Por Izabel Gurgel (*)
Fernanda Maria da Rocha Oliveira faz aniversário quinta, dia 18,
dois dias antes do aniversário de Berenice Fernandes Pinto. São rendeiras em
Canoa Quebrada. São labirinteiras, como dizemos das mulheres que fazem a renda
bordada ou o bordado rendado de nome labirinto. Conheci as duas indo de casa em
casa na antiga vila, hoje com cinco mil habitantes. No final de 2017 e
comecinho de 2018, andei rua por rua, beco por beco, procurando por elas.
Fernanda, a Fernanda de Tiquim, o marido. Berenice, a irmã da
também labirinteira Marlinda. Elas estavam na lista que comecei a fazer ouvindo
Dona Valdênia Barqueiro dos Santos desenhar, com palavras, uns e outros mapas
que narrativas do lugar fazem surgir em meio à paisagem atual. Estávamos na casa
da sogra dela, Dona Aracy, também labirinteira. Dona Valdênia ia contando e
juntas víamos fotos reunidas pela filha mais velha, Paula Renata, para uma
atividade na escola, quando era aluna. Paula Renata, aprovada em concurso
público, é professora na escola pública que tem o nome do poeta Zé Melancia.
Anos depois, recebo de um amigo fotos de Canoa com rendeiras em
atividade. Reconheço rostos, e a cena, recorrendo à memória de passagens pelo
lugar. Os tempos se sobrepõem, como um caderno de desenho aberto em uma folha
branca coberta por múltiplas folhas finas, todas elas, a de papel mais denso e
as transparentes, várias vezes percorridas por inscrições, anotações. Tensionam
o vazio, o silêncio e o desafio que, repetidas vezes, usamos para nos referir à
folha em branco.
Em uma das fotos, reconheço a senhora sentada, de costas, com o
tecido branco no bastidor, fazendo labirinto. É Dona Valdênia toda. Mas 30 anos
antes. Trata-se da mãe dela, Zélia, cujas habilidades com as mãos
materializavam, também, caixões de papel para sepultamento de crianças. É
forte, porque comum, ouvir rendeiras contando de si e contando, na mais
perversa das matemáticas, mortes sucessivas em casa. "Tive nove.... quatro
se criaram".
Outra foto, outro alpendre, e vejo quem não conheci. É Dona
Chiquinha de Ana na cadeira de balanço, dobrada sobre a grade apoiada nas suas
pernas, com o labirinto em andamento, parece uma das filhas que visitei, três
décadas depois daquele dia no qual estavam quase todas à porta de casa,
crianças ao redor, fazendo o que a maioria de nós mulheres há anos fazemos,
como um trabalho invisível. A sustentação de cotidianos do mundo, o dar arrimo
para que a vida da casa, e a 'lá de fora', possam acontecer.
Sabe quem está na foto, menino ainda? O neto de Chiquinha de Ana
que, sobre as imagens daquele caderno de desenho ao qual recorri, tatuou outras
anotações sobre a pele do lugar. Como Dona Valdênia em 2017 recriando Canoa,
Mauro Oceans desenha futuros onde nasceu. São mais de cem grafites a céu
aberto, feitos por ele, sozinho ou com mais gente por ele convocada. É uma rota
possível. Andar para encontrar, no labirinto Canoa, as rendeiras do lugar.
Entre as casas de Fernanda de Tiquim, Berenice, Marlinda, Dona Aracy e Dona
Valdênia, uma Canoa Quebrada que amplia nossa experiência de tempo.
(*) Jornalista de O Povo.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 14/05/23. Vida & Arte, p.2.
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