Por Izabel Gurgel (*)
Fiar e fiar. Tecer, tecer, tecer. Solange Maria Soares de Almeida
estuda mitologias sobre o fiar e o tecer, a fiação e a tecelagem,
perguntando-se se não seriam, ambas, uma espécie de voz possível para mulheres,
de algum modo, silenciadas. O modo, sabemos, incide sobre cada uma. É sempre
social, político. Com formação na UFC desde a graduação em Letras, Solange
Soares se torna Doutora em Letras com tese sobre o silêncio e a voz das
mulheres em comédias de Aristófanes, orientada por Ana Maria César Pompeu. Além
da escrita, da leitura de textos, Solange lê, e escreve, também outras
linguagens. Borda, tem mãos aplicadas. Saber fazer têxtil. Literaturas e as
artes manuais.
Contar e contar. Efimia Meimaridou Rola abre cada uma das caixas
com bordados narrando e narrando, desdobrando, e dobrando, o tempo de uma
tarde, a nos fazer ver, materializada, sua experiência de atenção plena, de
estudos de geometria sagrada, ela 'uma colorista das Arábias', a brotar,
florescer, no silêncio cheio, vivinho da silva, à sombra do alpendre do ateliê,
separado da casa de morada, um e outra no mesmo sítio na Lagoa Redonda. Mundos
e mundos na talvez mais desejada das escalas humanas, aqui a passar na palma
das mãos, olhos táteis. Literaturas e as artes manuais. Efi narra tão bonito
com o corpo-voz quanto com o corpo-mãos.
Escuto Efi, leio Solange, as grécias tão longe, tão perto,
acontecendo agorinha. Na ilha de edição que é a memória - cito outra vez o
poeta Wally Salomão - passam Nice Firmeza (1921-2013), Virgínia Fukuda, Lúcia
Galvão, artistas do têxtil. Passam como um cinema que quer dar a ver a gota
d´água pousar e se desfazer sobre a folha. Vi no "Filme Paisagem", de
João Vargas, um banquete Burle Marx (1909-1994), o paisagista que, como ele
próprio dizia sobre o que queria fazer, ampliou nosso vocabulário de jardim.
Efi conta, então, que não foi aluna de bordado da Nice. "Fui
aluna de cozinha". E diz a receita do doce de siriguela. A fruta inteira.
Retira-se só o talo, um a um, um por um. O doce ali se realiza, como se a
cozinha da casa-ateliê-museu do Mondubim, o Mini Museu Firmeza, fosse um
bordado, ou uma série deles, que a Efi tirasse da caixa para nos oferecer
aquele mundo na palma das mãos. O mundo, ateliê de miudezas por vezes
espantosas. Grécia, Mondubim, Lagoa Redonda.
E Japão. Citei, pensando na Virgínia Fukuda, o sashiko, tão filho
da necessidade. Efi segue o movimento e nos mostra, então, sua escola portátil
do bordado que nasce japonês como modo talvez de cerzir, costurar reparando,
para fazer durar a roupa, cotidiana como a necessidade de comer. Efi bordou
desde seu primeiro contato com o sashiko até fazer a linguagem dizer o que ela
queria dizer. Ela, Efi. Ela, a linguagem.
Entramos na casa-ateliê. Efi quer nos mostrar, embaladas sobre a
cama, sob o cortinado, tapeçarias, outras peças de maiores dimensões. A lição
magistral. Faz da jóia para levar junto ao corpo, escala menor, à obra que pode
revestir parede, fazendo-nos olhar as superfícies de que somos feitos. Lembro,
então, d'A Casa, livro de Natércia Campos. Narradora, personagem, locus, lugar
onde se passa o que conta, A Casa narra o que os ventos lhe contaram: e o diz
logo na abertura do livro, abertura bordada por Lúcia Galvão. A Casa diz narrar
tocada por um espanto, o de perceber que a maioria dos humanos não se dá conta
do que acontece em suas próprias casas. Tia Alma e outras mulheres d'A Casa
bordam e bordam. Sim, nós sabemos. Os silêncios são eloquentes.
Você conhece o mito de Filomela?
(*) Jornalista de O Povo.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 23/07/23. Vida & Arte, p.2.
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