Nos idos dos anos 1960, na Faculdade de
Medicina da Universidade Federal do Ceará, poucos acadêmicos possuíam carro, de
uso exclusivo, mesmo dentre aqueles de maior poder aquisitivo. Na época, carro
era quase um bem de grife, sendo comum a carona solidária, com revezamento de
veículos entre colegas de turma, que podiam contar com esse equipamento da
família. A maioria, entretanto, dependia de ônibus, que faziam as linhas Granja
Paraíso e Costa Mendes/Rodolfo Teófilo, passando nas imediações do Campus do Porangabuçu, atualmente
denominado Campus Rodolfo Teófilo ou
mesmo das outras linhas que transitavam pela Av. João Pessoa, a meio quilômetro
da Faculdade.
Havia um acadêmico que ganhara do pai um
carro novo, do ano, e fazia questão de zelar pelo seu possante, para dar sempre
a impressão de ser novo, recém-saído de fábrica; para tanto, ele estava sempre
aplicando um polimento de primeira, o que conferia um brilho todo especial ao
carango.
O dono do carro não o estacionava sob as
copas das mangueiras, onde normalmente ficavam os carros dos seus colegas, com
receio de que o mesmo viesse a se sujar com as folhas caídas das árvores. Por
isso, preferia deixá-lo numa passagem entre os Serviços de Imunologia e de
Microbiologia.
Um dia, por um descuido do servente do
Laboratório de Imunologia, que não travou direito a porta do chiqueiro, onde
ficavam acantonados os caprinos usados nas pesquisas do Prof. Raimundo Vieira
Cunha, um grande bode escapou e passou a circular, livremente, na área
contígua.
Enquanto explorava o terreno, o animal
certamente divisou um suposto concorrente de sua espécie, dando início a uma
acerba disputa por território. Na verdade, o bode visto era a imagem do próprio
animal refletida na flandragem do reluzente carro, que passou a sofrer as
marradas, até que a imagem ficasse inteiramente borrada. Quando o caprino
mudava de posição, a sua imagem reaparecia, e com ela, novo ciclo de cabeçadas,
como um aríete, para forçar a retirada do “intruso”, que ameaçava seus domínios
chiqueirais.
Como o episódio aconteceu no horário de
aulas, somente bom tempo depois, despertado pela sequência de baticum, o
servente do Laboratório conseguiu laçar o pai-de-chiqueiro, conduzindo-o de
volta ao seu redil. Mas, aí, já era tarde, o carro ficara deveras avariado, com
diversas partes da lataria danificadas, para a total desconsolação do seu
proprietário.
Se tivesse pelo menos sido o famoso “bode
Ioiô”, ele ia passar para a “história”, e não ficar com aquela cara de tacho
amassado, parecida com a do “Sinca Chambord”, depois
de uma batida em fusca antecedente ao modelo “Fafá de Belém”.
Marcelo Gurgel Carlos
da Silva
Da Sobrames/CE e da Academia Cearense de Médicos Escritores
Fonte: SILVA, Marcelo Gurgel Carlos da. Medicina, meu humor! Contando causos médicos. 2.ed. Fortaleza:
Edição do Autor, 2022. 144p. p.50-51.
* Republicado In: SILVA, M.G.C. da. AMC. Causo médico: marradas no carro novo. Informativo AMC (Associação Médica Cearense). Maio de 2023 - Edição n.22, p.20 (em pdf).
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