sábado, 4 de novembro de 2023

Causo Médico: OS BILHETES DO SOMBRA

Aí, por volta de 1970, na Faculdade de Medicina, da Universidade Federal do Ceará (UFC), assim como em qualquer instituição superior, havia um aluno, aqui rotulado de Francimar (nome fictício), que parecia ser um fronteiriço mental, por suas limitações compreensivas.

Na época, o Hospital das Clínicas da UFC dispunha de pequenos armários individuais, para uso dos internos, que neles guardavam alguns apetrechos: artigos de higiene pessoal, livros, estetoscópio, batas etc. Em caráter especial, acadêmicos de outros anos que justificassem a necessidade de contar com tal facilidade, por morar longe e ter que permanecer o dia todo na faculdade, por exemplo, poderiam ser contemplados. Francimar era um desses casos.

Como há sempre um chinelo para um pé doente, Francimar tinha um bem-querer, a Lurdinha (nome fictício), que ele tratava de propagar aos quatro ventos, como sendo a paixão da sua vida: era Lurdinha, pra cá e pra lá; e de tanto falar da amada, acabava ficando um chato, perante os colegas, que decidiram aprontar uma peça com ele.

Para tristeza de Francimar, apareceu no seu armário um bilhete, com os dizeres:

– Francimar, eu estou namorando a Lurdinha! Assina: o Sombra.

De posse do bilhete, sentindo-se injuriado com a ofensa, parte o Francimar para a investigação, feito um Sherlock Holmes, a conferir a letra do bilhete com as contidas nos cadernos dos seus colegas de turma.

O trabalho foi em vão, porque não identificou o responsável, e o Sombra, um personagem de uma afamada novela televisiva da provinciana Fortaleza, que usava esse pseudônimo, para expedir missivas eivadas de futricas, voltou a atacar:

– Francimar, eu estou agarrando a Lurdinha! Ela é bem gostosa! Assina: o Sombra.

Dessa vez, desconfiado de que alguma colega estivesse em conluio com os rapazes, ele passou a conferir os cadernos das colegas, nada encontrando que pudesse apontar a culpada. Intuiu que algum colega possuía a chave do cadeado e tratou logo de substituir por um cadeado um pouco maior.

A medida foi infrutífera, porquanto, no dia seguinte, encontrou no dito armário mais um bilhete fulminante:

– Francimar, eu “papei” a Lurdinha! Ela é muito boa de cama! Assina: o Sombra.

Isso o deixou transtornado. Para ele, a Lurdinha era pura, virgem, e não permitia sequer que ele avançasse o sinal. Eles iam só um pouco mais do que o pegar na mão. Insatisfeito, pensou em procurar a direção da Faculdade de Medicina, para tomar as providências cabíveis, para proteger a sua honra e a integridade moral da Lurdinha.

Cogitando que o “Sombra” também teria uma cópia da chave do novo cadeado, substituiu o segundo cadeado por outro, de avantajado tamanho, para impedir que o “infame” abrisse o seu armário, para pôr as citadas aleivosias, assacadas contra o amor da sua vida.

Os seus colegas, envolvidos com a trama, já um tanto fartos com a repetitiva gozação, decidiram aplicar um ponto final no episódio, arrombando o enorme cadeado.

Para ser franco, a limitação mental do pseudo Sherlock o impedia de entender que as generosas frestas da porta do armário tinham espaço suficiente para que os bilhetes, escritos por um funcionário administrativo da universidade, fossem dispostos no seu interior, independente de qualquer violação de fechadura ou cadeado.

Marcelo Gurgel Carlos da Silva

Da Sobrames/CE e da Academia Cearense de Médicos Escritores

Fonte: SILVA, Marcelo Gurgel Carlos da. Medicina, meu humor! Contando causos médicos. 2.ed. Fortaleza: Edição do Autor, 2022. 144p. p.48-49.

* Republicado In: In: SILVA, M.G.C. da. AMC. Causo médico: os bilhetes do Sombra. Informativo AMC (Associação Médica Cearense). Abril de 2023 - Edição n.21, p.18 (em pdf).


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