domingo, 17 de dezembro de 2023

A JORNADA DE ACEITAÇÃO

Gabriel Damasceno, jornalista de O Povo

Positivo.

"Pra mim foi um baque", lembra Cleide Carvalho (nome fictício), 49, sobre o diagnóstico de HIV. "Foi muito sofrido e doloroso". Ela descobriu o vírus aos 19 anos, na década de 1990. Ela vivia com um homem, com quem tinha um filho. "A gente brigou, não lembro mais a razão, mas decidi dar um castigo nele. Deixei ele com a criança e me mandei (para uma festa)".

"Eu era muito nova, muito inexperiente das coisas".

Ela foi para um show na Praça José de Alencar, no Centro de Fortaleza, onde conheceu um outro rapaz. Os dois passaram a noite juntos. "Quando foi de manhã ele falou: 'tenho uma coisa pra te dizer'. Eu disse: 'pois fale, não tem problema não'. Ele, (então), disse assim: 'e se eu te disser que eu tô com aids?'. Aí o negócio desmoronou pro meu lado".

O rapaz percebeu que Cleide ficou abalada e desconversou a história. Disse que tudo não passava de uma brincadeira. Ela, que não conhecia muito sobre o vírus, acreditou e se acalmou. Vale ressaltar que ela foi vítima de um crime. O que o homem fez pode, em tese, se enquadrar como perigo de contágio de moléstia grave — com pena de 1 a 4 anos e multa — ou como lesão corporal gravíssima — com pena de 2 a 8 anos. "Pela aparência dele, eu jamais acharia que ele tivesse (o HIV). Ele se apresentava muito bem".

Depois da situação, ela começou a apresentar alguns sinais, mas não achava que pudesse ser o vírus. Tinha acreditado na palavra do homem. "Comecei a fazer exame em cima de exame. O médico suspeitava que eu tava com tuberculose".

Ela fez o teste para a doença, mas deu negativo.

"Voltei para (o hospital) de novo e o médico disse: 'Só tem um jeito: vou pedir o teste do HIV'. Aquilo pra mim foi um baque, mas eu acreditava que não tinha (nada). Não queria nem fazer (o teste)".

Ela fez e, dessa vez, deu positivo.

A reação foi de negação. Mesmo com o resultado em mãos, ela decidiu não iniciar o tratamento. "Eu pensava assim: 'Não vou me tratar, porque não estou com isso não'. Tu acha uma coisa dessa. Como que a pessoa tem um exame na mão e tá se negando desse jeito? Eu não aceitava de jeito nenhum".

Depois do diagnóstico, ela chegou a ir atrás da família, mas foi desprezada. O preconceito nos anos 90 era menor que na década de 80, mas ainda era grande, comparado com hoje. "Me isolaram e eu percebi que essa rejeição tava me fazendo mal. Então, eu decidi que não iria mais procurar por eles. Iria morar só".

Em casa — e sem começar o tratamento — os sintomas foram se agravando. "Quando vi que o negócio tava piorando mesmo, eu tomei a decisão de me tratar. Eu pensei assim: 'vou me tratar porque senão vou morrer. E morrer rápido'. Aí eu comecei a levar a sério".

Cleide e Concebida são retratos de uma outra época. De quando a aids representava uma condenação. Hoje as coisas são diferentes. É possível viver como qualquer outra pessoa, desde que siga o tratamento da forma adequada. Militantes, inclusive, pedem para que pessoas com aids não sejam chamadas de "doentes" ou de "soropositivos", mas como "pessoas que convivem com HIV".

No fim, Concebida estava certa: "A aids não é um bicho de sete cabeças".

Publicada em O Povo, de 1/12/23. Cidades. p.6-7.

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