Por Henrique Araújo (*)
Há uma espécie de
vergonha do livro no Brasil. Explico. Como objeto, ele sugere um caráter
pernóstico que agride a quem não esteja participando do ato da leitura, quase
sempre individual.
Portá-lo, por sua vez,
equivale a signo de distinção malvisto, embora por toda parte haja entre nós
essa batalha sangrenta por diferenciação a partir do consumo, seja do modelo de
celular da vez, do carro ou mesmo do destino turístico.
Mas com o livro, não.
Não se tolera demonstração pública de afeição ou de relação de proximidade com
ele. Daí que qualquer tipo de exposição e manuseio, mesmo no privado, seja
imediatamente tomado como gesto de envaidecimento e de autolouvação, tratados
então como algo a se reprovar socialmente.
Há quem diga que isso só
é possível num país de privação material e precariedade cognitiva no qual o
objeto tenha custo elevado, considerando-se o poder de compra do brasileiro
médio, cuja renda mal cobre o total dos boletos espalhados pela mesa a cada
começo de mês.
Mas tem coisa a mais aí
nesse desapreço - não digo apenas ao livro, mas ao ato de ler e a tudo que o
cerca - que não se esgota na explicação meramente econômica.
Talvez uma aversão
anti-intelectual de origem, que radica na divisão do trabalho, com a velha
clivagem de classes e, em última instância, entre competências de natureza
física e criativa, braçal e intelectiva.
Afinal, é o que se diz
por aí, só lê quem dispõe de tempo livre, e quem dispõe de tempo ou é vadio ou
explora o trabalho de outrem para assegurar a conservação das próprias
riquezas, entre as quais está seguramente essa da "vida-lazer", as
horas excedentes para o gozo próprio.
Mas essa teoria também é
incompleta, já que, em tese, as classes com mais tempo disponível para leitura
no país não são as que mais leem ou as que consomem mais livros, em seus muitos
formatos e preços. No mais das vezes, dá-se o contrário, com os capitais desse
estamento privilegiado se concentrando noutras searas mais rentáveis do ponto
de vista do circuito de exibição comum.
Tome-se o BBB como
exemplo. Trata-se de um reality cuja sazonalidade renova sempre um debate sobre
a sacralidade do livro, mas sob uma chave enviesada, atravessada por memes de
uma advogada-influencer cujo ostensivo ímpeto leitor é um ativo que se
folclorizou como símbolo, em contraste com o interesse popular que o programa
desperta.
Logo, de um lado, está o
livro e seu mundo que se descortina para dentro. E, do outro, o BBB. Ambos como
universos imiscíveis, feito água e óleo, as dinâmicas do jogo de intriga se
constituindo como o avesso da leitura, e o exercício de decifração leitora
correspondendo ao inverso do enredo que se tenta estabelecer a partir da
colisão dos egos dos personagens confinados.
Em princípio, com tanto
tempo disponível e fartura de meios, a "casa mais vigiada do Brasil"
seria por natureza o lugar ideal para ler, certo? Mas, por decisão da emissora,
o livro foi banido daquele espaço que consagra a depreciação do indivíduo,
ampliando uma cisão entre apreciação cotidiana da obra escrita e o consumo dos
bens culturais.
Lá, existe lugar e tempo
para música, cinema, competição, gastronomia, sexo, exercícios físicos e toda
sorte de elementos típicos de uma convivialidade que simula o real (tudo isso
experienciado numa arquitetura que reproduz as divisões de uma casa), mas não
para o livro, excluído como materialidade e existente apenas como referência
episódica na boca de um dos participantes.
(*) Jornalista de O Povo.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 14/02/24. Vida & Arte, p.2.
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