Por Izabel Gurgel (*)
Renato se cria em uma
cidade encantada. Menino nos anos 1950, toda sexta-feira santa, com seus irmãos
Raimundo e Cícero, sobe e desce, a bem dizer brincando, a colina sagrada na
Serra do Catolé. Vão cedinho. Às vezes tão cedo que o sol ainda não apareceu.
No caminho, Madrinha
Isaura conta Juazeiro. Uma fonte, como o rio Salgadinho. O rio tem as águas. A
madrinha, as histórias. Os irmãos se banham na passagem fluida entre a cidade e
a colina. Renato é um peixe naquelas águas.
A partir da elevação à
vila, a cidade é de 1911. Começa bem antes, sabemos. Surge no meio do caminho
entre um lugar e outro, feito ponto de descanso para prosseguir (a) viagem. Um
destino bonito, não é, o de ser um lugar que acolhe e dá ânimo para seguir?
O pouso era à sombra das
árvores que deram o nome à cidade. Você e eu sabemos, juazeiros permanecem
frondosos e frescos mesmo com escassez d'água. Milagre?
O milagre é parte da
cidade como as mãos são do nosso corpo. As mãos são outras fontes de milagre
por lá.
O milagre ao qual nos
referimos foi no dia primeiro de março de 1889. Naquele ano, como agora em
2024, uma sexta-feira.
Maria Magdalena do
Espírito Santo de Araújo sente muito: a hóstia se transforma em sangue na sua
boca. A gente diz na boca mas sentir, sabemos, é no corpo todo. Era do Crato o
padre celebrante. Cícero Romão Batista (1844-1934) passa a morar no povoado em
1872.
O acontecimento se
repetiu várias vezes, a moça beata comungando também com outros sacerdotes.
Ganhou o mundo. Como uma cheia do rio, transbordou. O padre chegou a ser
proibido de celebrar. O túmulo da mística Maria de Araújo (cerca de 1862 -
1914) foi destruído. Era para apagar, mas, como diz parte da Física sobre o
Universo, segue em expansão.
Nunca mais parou de
chegar gente. Quem voltava para casa, saia pensando em vir sempre. Muitos
ficavam, como a família da Madrinha, de Alagoas. O lugar é um ímã. Chama.
Tornou-se professor o
menino morador da Rua Nova, a atual avenida Dr. Floro. Em 2004, no seminário
internacional alusivo aos 70 anos da morte do Padre Cícero, eu o ouvi contar da
convocação do Padrinho à constelação romeira: "Tragam sua arte para o
Juazeiro do Norte".
A aplicação da máxima
beneditina - oração e trabalho - deu na cidade cheia de casas com seus altares
e oficinas. Sagrado saber fazer. O que se pode ver ali mesmo na velha estrada,
atual Rua do Horto: "Cada casa, uma capela", diz Renato, ator,
dramaturgo, pesquisador das muitas vidas do lugar, como o mundo feitos a mão
por mulheres e homens. Forjada pela necessidade, uma escola de inteligências e
sensibilidades.
Juazeiro tem seu próprio
evangelho. O Salgadinho é o rio Jordão. Três quilômetros depois do Horto das
Oliveira, fica o Santo Sepulcro. A Pedra do Joelho atesta a passagem de Maria e
José, com o filho. Na parada para descansar, o joelho dela deixou marca na
rocha.
Subo o Horto com Renato,
ou escuto sua fala encantatória na imaginação, e é sempre como se ele fizesse
oferendas de palavras novas a cada pedaço do caminho. As pedras cantam. Nos
ombros de um sábio e gentil gigante, vou em estado de descoberta do mundo.
(*) Jornalista de O Povo.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 3/03/24. Vida & Arte, p.2.
Nenhum comentário:
Postar um comentário