quinta-feira, 4 de julho de 2024

MAIA, ICÓ: debaixo do barro do chão

Por Izabel Gurgel (*)

Um bonito cinza escuro, de nuvens de carga cheia de chuva, é a cor da louça Santa Maria antes de ir ao forno. Depois da queima, a cor muda para a de areia de praia, como conhecemos no Ceará. Uma areia fina, clara, enxuta. Areia de duna.

No sítio Maia, em Icó, chão e céu da produção dos utensílios de barro, levamos uma quartinha ainda crua à altura do rosto, para, além do toque das mãos, sentir o frescor na face. A cerâmica do Maia é ornada por uma pintura cor de piçarra encharcada, cor de telha, como dizemos quase fazendo de conta que as telhas não variam tanto de coloração quanto o relevo de uma serra pela incidência do sol.

Naquela paisagem, a serra é, como o triunfo, um argumento incontornável. Havia lido semanas antes a frase e ela se fez ação nos levando a parar o carro e descer na Forquilha para olhar melhor. "É uma chapada?", alguém perguntou. Uma singular lição cotidiana de desenho a serra do Maia.

Água Branca, Aroeira, Forquilha dos Batista, Jenipapeiro, em ordem alfabética. Os caminhos, os lugares, os deslocamentos, sabemos, convocam outras ordenações. Para ensinar o caminho do Maia, diz-se o rumo do distrito onde se localiza, o Icozinho.

Conheci a louça do Maia bem antes de ir ao Maia. Em Icó, na loja da Aproarti, pertinho da Matriz, dedicada à Nossa Senhora da Expectação e de piso tão fresquinho que, cozido, parece de barro cru, molhadinho. Convida a botar o pé no chão e duvidar do calor lá fora. Igreja e loja ficam no Largo do Théberge, um antigo caminho de passagem das boiadas, também desenhador dos territórios Ceará.

Talvez o uso do toá na pintura ornamental tenha feito, na memória, o enlace com "As loiceiras de Tacaratu", que só conheço do livro da fotógrafa Ana Araújo sobre a cerâmica de sua terra natal. Ela via a loiça na feira da cidade pernambucana, no sertão do rio São Francisco.

Ana saiu no rastro das mulheres loiceiras, como Antônia Inês da Conceição, de Altinho, e Maria de Dion, da terra Pankararu Brejo dos Padres. As primeiras imagens são de 1987. As mais recentes, de 2017, um ano antes da publicação. Trinta anos apurando o olhar em encontros com um saber, uma prática de milênios. Mulheres e a sustentação de cotidianos.

O toá, ou tauá, "uma pedra de um intenso vermelho terra", como escreve Ana, dá cor à linha riscada que parece têxtil em seu movimento na superfície de canecas, pratos e panelas, bordando a louça do Maia.

Maria, da Aproarti, lembra de, menina, sair do sítio Humaitá com a família para a procissão do Senhor do Bonfim em Icó, dia primeiro de janeiro, e ver a louça Santa Maria na feira da festa. A bem dizer uma biblioteca de brinquedos feitos a mão, cuscuzeirinhas e o elenco básico de vasilhas para cozinha em miniatura.

Maria, 61 anos, voltou a ouvir falar da louça Santa Maria em 2015, em um encontro da Marcha das Margaridas, movimento de trabalhadoras do campo, da floresta e das águas. "Narciso, do sindicato dos trabalhadores rurais, falou comigo sobre o barro de lá". Foi conhecer o lugar. Iniciaram atividades de formação.

No Maia, não conheci Maria de Totonho. Estive com Lúcia Arlindo de Matos, que completa 72 anos agora em junho. É obra dela o presépio visto na sala do casal Patrícia e Lauro, irmão de Lúcia por parte de pai. Lúcia

Por vontade de beleza, imaginei Icó, que tem um senhor acervo de presépios não reconhecido pela cidade, trocando de pele em dezembro, um apuro os caminhos acesos para a cena do nascimento do menino-deus modelada em barro, artesania de povos originários. Aqueles que não cessam de nos ensinar outros desenhos de mundo.

(*) Jornalista de O Povo.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 9/06/24. Vida & Arte, p.2.

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