domingo, 29 de setembro de 2024

O SUS precisa melhorar a forma pela qual ele está sendo organizado

André Médici esteve no Fórum no início deste mês de setembro e deu uma palestra sobre como a tecnologia está quebrando barreiras.

Por Gabriela Almeida, jornalista de O Povo (*)

O economista sanitário André Medici analisa os avanços e dificuldades do sistema único de saúde dias depois da aparelhagem completar 34 anos em que foi regulamentada pela Lei nº 8.080 no Brasil.

Se o Sistema Único de Saúde (SUS) fosse uma pessoa, seria alguém com prestígio internacional que, com 34 anos de idade recém completos, enfrenta uma necessidade de organização e acena com curiosidade para novidades como o avanço do mundo digital — em busca de usar a tecnologia em benefício próprio.

A metáfora resume um pouco do olhar que o economista sanitário André Medici tem sobre essa aparelhagem sanitária. Profissional participou do movimento de construção do SUS, que foi instituído pela Constituição Federal de 1988, mas regulamentado somente pela Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990.

Carregado de experiência, ele esteve no início deste mês de setembro no MV Experience Fórum 2024, maior evento de inovação e tecnologia para a saúde do Brasil, onde conversou com O POVO e entrelaçou presente e futuro daquele que é o maior sistema público de saúde do mundo.

O POVO - O senhor participou do movimento de construção do SUS. Quando olha para esse sistema, o que analisa que ainda falta alcançar? Quais são os principais déficits?

André Cézar Medici - Eu acho que os principais déficits são associados a área de gestão. O SUS precisa melhorar a forma pela qual ele está sendo organizado. Ou seja, boa parte da organização do sistema de saúde ele utilizou a base municipal como base de territorialização. Na verdade, a maior parte dos municípios brasileiros têm menos de 50 mil habitantes. Ou seja, quando você tem menos de 50 mil habitantes você não tem as condições técnicas necessárias pra poder dar uma saúde integral àquela população.

Então o município acaba não tendo condições de atender tudo que a população necessita, tem que ir pra outro município mais próximo e muitas vezes você tem problemas porque o prefeito do município mais próximo não atende naquele município porque a pessoa é de outro partido, ou porque tem rixa política, ou porque não tem estrutura, só pode atender o pessoal do próprio município.

O que você tem que fazer pra combater isso? Criar redes de saúde, eu acho que o SUS tentou algumas soluções mais voluntárias, como os consórcios intermunicipais de saúde, muitos deles deram certo, mas a maioria não, e muitas vezes eles duravam por um tempo e depois acabavam. Então a ideia de regiões de saúde, que podem ser organizadas através de organizações sociais, [é que elas teriam] uma perenidade muito maior pra poder organizar dentro de uma rede de saúde um conjunto de pessoas, um conjunto de serviços, que tem os hospitais, que tem os centros de saúde, os ambulatórios especializados, exames, tudo aquilo que necessita uma rede pra poder funcionar e atender a população, em um conjunto de municípios, de uma maneira mais sólida.

OP - Já que mencionou a questão política, nesses últimos anos nós temos visto o crescimento do negacionismo científico. Quando a gente fala sobre o avanço do sistema de saúde, como isso tem impactado?

André - Eu diria que a questão política dentro do SUS é o fato de eles [gestores] não terem muitas vezes uma aceitação pra determinados tipos de processos de gestão que possam ser melhores. O SUS acaba sendo um sistema que se permanece como um sistema público e na verdade o sistema de saúde deveria ter um pouco mais de mobilidade. Eu sempre fui a favor de parcerias público-privadas, onde você pudesse integrar estabelecimentos privados com o SUS. Na prática isso acontece, mas que você pudesse ter um sistema que se beneficiasse de tudo aquilo que você tem de saúde em um determinado local.

Mas o que acontece [é que] muitas vezes há determinados tipos de posturas que são muito radicais, [que determinam que] o SUS só atenda dentro dos postos de saúde do SUS e há do lado uma série de outras clínicas privadas que podem atender também. Então não faz com que você tenha basicamente uma conformação dos serviços necessários, usando todos os recursos disponíveis [...] Com isso acontece mau atendimento e desperdício, pois tem recursos da sociedade que não estão sendo utilizados.

OP - E quando a gente fala sobre inovar, direcionando o olhar para outros países, que inovações que estão sendo realizadas lá fora que poderiam ser aplicadas no SUS?

André - Todas as questões específicas de prontuário eletrônico de paciente, a questão de uso de telessaúde, telemedicina, a possibilidade de você ter interoperabilidade das bases de dados e a inteligência artificial, todas as coisas que estão avançando em saúde estão avançando muito nessa linha hoje em dia, utilizando isso cada vez mais. E esse é um dos processos que podem não só melhorar a atenção como baratear custo. [...] Até o próprio governo atual está criando um processo enorme de rever o Datasus e criar um sistema específico de Tele SUS, alguma coisa desse tipo, que possa reorganizar a questão específica da atenção digital ou dos procedimentos digitais.

OP - Quais as principais barreiras que existem no Brasil para que a área da saúde tenha um avanço, e como a tecnologia pode contribuir para ultrapassar elas?

André - Uma das principais barreiras é a questão da distância. Você tem comunidades rurais que não têm acesso a serviços de saúde. Como que você pode fazer com que essas populações rurais tenham acesso a serviços de saúde? Através da telemedicina. Você implanta núcleos de saúde lá, essas pessoas passam a ter acesso, elas não precisam ir até as cidades nas quais muitas vezes elas precisam viajar 20 dias de barco ou mil quilômetros pra poder ter acesso há algum tipo de atenção, então isso dai é uma coisa fundamental. A outra questão é fazer com que elas [população] tenham um número, um registro que permita com que toda a sua saúde seja registrada, para que você saiba que tipo de problema ela tem, como que essa pessoa foi tratada até então e como se pode melhorar o atendimento dela no futuro a partir da sua história clínica, e também a partir do seu trajeto ao longo do seu serviço de saúde.

OP - O senhor citou a telemedicina, que foi impulsionada na pandemia. Como enxerga o avanço dela no Brasil nos últimos anos?

André - A telemedicina e a telessaúde têm avançado cada vez mais, elas chegam por exemplo hoje em dia a monitorar determinados tipos de intervenções. Você tem pessoas que de longe ficam monitorando basicamente aquela intervenção que o médico com menos experiência pode fazer. Não só através de monitores remotos, mas também através da própria tela, que ela tem alta resolução, e isso permite que você possa avançar muito na atenção e cuidado ao paciente e dar uma certa coisa mais instantânea.

OP - Que outros serviços foram impactados pela pandemia? 

André - A pandemia trouxe muitas inovações como a telemedicina, mas a pandemia trouxe alguns problemas para o Brasil, que foi especificamente aquele represamento enorme de determinados tipos de procedimentos, de cirurgias eletivas, uma série de coisas. O governo tem que lidar agora com uma carga enorme de procedimentos eletivos que até hoje em 2024 não foram cumpridos, você tem mais de um milhão de pessoas na fila de procedimentos eletivos, então essa é uma questão que exige que se tenha uma maior capacidade dos serviços, de começar a produzir esses tipos de processos, e toda a parte de registro eletrônico de saúde, é uma estratégia fundamental pra isso.

OP - E as consequências que ficaram em razão da ideologia pregada nesses últimos anos, principalmente na pandemia, contra o uso de vacinas?

André - O Brasil foi muito prejudicado por isso. Você teve uma resistência muito grande na pandemia, então o Brasil demorou muito a ter uma posição do Governo favorável na questão das vacinas, isso retardou a vacinação da população brasileira e acabou fazendo com que no Brasil tivesse um número de mortes e um número de pessoas que contraíram a doença desproporcional em relação ao tamanho da população. O Brasil foi um dos países que teve, principalmente no início da pandemia, um dos piores processos. Depois disso, quando chegou em 2021-2022, o Governo convenceu que tinha que vacinar em massa, mas aí já tinha morrido muita gente.

OP - Ainda existe essa resistência as vacinas? Ainda é um problema?

André - Existe uma resistência a vacinas, mas é menor, mas existe essa resistência não é só no Brasil, é em vários outros lugares. Pois é um tipo de resistência que está baseada em determinados tipos de falsa informação, de coisas que as pessoas pensam. Muita gente pensa que a vacina está associada a doenças mentais, uma coisa que não é verdade [...] São várias coisas desse tipo. Criam falsas impressões que muitas vezes passam a ter resistência a vacinas, mas eu acho que hoje em dia a gente já tem muito mais aceitação.

OP - E para a próxima década, o que esperar do SUS?

André - Eu gostaria de ser otimista. Eu espero que o SUS consiga, por exemplo, ter um avanço muito grande nessa parte de registros eletrônicos, com uma colaboração grande desse processo com o setor privado. E com isso ele consiga avançar muito na melhoria do acesso da população e na produção de um tipo de assistência médica que seja mais sustentável, pois o grande problema que você tem dentro do SUS hoje em dia é a sustentabilidade do SUS, frente ao processo de envelhecimento e uma séria de outras coisas.

Então eu tenho esses aspectos positivos, mas eu acho também que esse processo de envelhecimento que a população brasileira está sofrendo vai exigir muito mais capacidade do serviço de saúde de detectar as condições prévias, de promoção e prevenção. O que leva àquela questão para que as pessoas possam viver mais e evitar que tenha mortalidade precoce por determinadas tipos de doenças crônicas que a gente tem hoje em dia. Principalmente, doenças cardiovasculares e por câncer que são os grandes problemas que a gente tem hoje em dia.

*A repórter viajou para São Paulo a convite da empresa MV Saúde Digital 

Fonte: O Povo, de 22/09/24. Aguanambi 282. p.17.

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