sábado, 21 de junho de 2025

JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE II - Entre a cura e o custo: os desafios da judicialização da saúde

Por Mateus Mota, Reportagem OP+ e Economia

Cuidar da sua saúde: (não) tem preço?

É comum acreditar que problemas graves de saúde são algo distante. Imagine, então, ter a vida revirada de ponta cabeça durante um exame de rotina. Ao entrar no consultório, o olhar do médico já indica que uma má notícia estava por vir.

O diagnóstico causa um choque: uma doença rara, com um nome difícil de pronunciar. E o pior vem logo em seguida — o único tratamento disponível custa milhões de reais.

Foi o que aconteceu com o fortalezense Antonne, de 8 anos, diagnosticado com Distrofia Muscular de Duchanne (DMD). O diagnóstico veio depois da criança sofrer uma queda, e precisar de uma consulta de emergência no Hospital Infantil Albert Sabin.

Até então, a dificuldade em manter o equilíbrio e permanecer longos períodos em pé ou em movimento foi notada pela família e pela escola, mas o diagnóstico só foi fechado depois de uma bateria de exames. Hoje, as melhores chances da síndrome estagnar e dar Antonne uma chance de manter seus movimentos é a terapia genética Elevidys, avaliada em aproximadamente R$ 20 milhões.

A doença, que afeta mais meninos que meninas, pode ser um mistério para muitas pessoas e ter um fim trágico para outras. Sem os cuidados paliativos, cerca de 75% dos pacientes com a síndrome morrem até os 20 anos.

Para a mãe, Karoline Alves, tão assustador quanto o prognóstico é a morosidade dos processos. "A aprovação da Anvisa foi para pacientes que ainda andam e têm até 7 anos, mas isso exclui muitas famílias que têm filhos mais velhos e que ainda conservam as funções motoras", relata.

"Quando tivemos o diagnóstico e fomos atrás da Defensoria Pública para requerer o tratamento ele ainda estava na idade, mas o Antonne completou 8 anos no dia 25 de janeiro e o processo ainda vai ser analisado e precisa de mais um laudo do médico, sendo que o próximo retorno é no próximo dia 12 de fevereiro", diz o professor de caratê Alexandre Rosa, pai de Antonne.

Atualmente, Antonne toma uma dose diária de corticoides, que além de não serem ofertados pela assistência farmacêutica do SUS, podem causar uma série de efeitos adversos, que incluem cansaço excessivo, dores de cabeça, vertigens e aumento de peso, por exemplo. Para preservar as funções motoras, a família também é acompanhada pelo Hospital Sarah, no bairro Passaré.

A família, no entanto, mantém a esperança de conseguir uma dose do Elevidys. A terapia funciona utilizando um vetor viral para transportar um gene humano que codifica a microdistrofina, com o objetivo de substituir a distrofina disfuncional ou ausente no organismo do paciente.

Esse tratamento visa a restaurar, ainda que de forma parcial, a função muscular em pacientes pediátricos e barrar a progressão da doença. O medicamento é administrado em uma única dose intravenosa, com a quantidade ajustada de acordo com o peso da criança.

A via de ação e método de dosagem e aplicação encarecem ainda mais o tratamento, como explica Karoline, tornando praticamente impossível mantê-lo em estoque.

"É caro, sim, mas qual o custo de uma vida? Certamente se os técnicos do Ministério da Saúde tivessem um filho, um familiar que precisasse do medicamento, não mediriam esforços", diz a mãe.

Outra família que enfrenta uma batalha similar é da goiana Anny Tereza Moscôso, diagnosticada com atrofia muscular espinhal (AME). A criança de dois anos passou a receber o medicamento "Onasemnogene abeparvoveque", vendido sob a marca Zolgensma.

A medicação, aprovada para crianças menores de dois anos em 2019 e incorporada ao SUS em 2022 é considerada uma das mais caras do mundo. A família da menina reivindicou na Justiça que a União custeasse o tratamento, que custa em torno de R$ 7 milhões.

O preço é, em grande parte, também justificado pelo uso de engenharia genética. Para funcionar, ele age diretamente em neurônios motores, que precisam de uma proteína chamada SMN (proteína de sobrevivência do neurônio motor) como “alimento”. Sem quantidade adequada da proteína SMN, os neurônios motores morrem.

Como são eles os responsáveis pelo controle da atividade muscular, a sua morte leva à fraqueza muscular e à perda progressiva dos movimentos, até a paralisia. O mecanismo de ação do Zongelsma insere uma cópia do gene humano responsável pela proteína SMN.

"Uma aplicação única do produto pode melhorar a sobrevivência dos pacientes, reduzir a necessidade de ventilação permanente para respirar e alcançar marcos de desenvolvimento motores”, diz o texto da Anvisa que liberou a medicação para Anny.

Até a mudança no entendimento do STF, situações como a da família de Anny e Antonne eram o ponto de partida de uma série de processos judiciais que buscam o cumprimento de um direito já reconhecido, mas negado na via administrativa.

Essas ações correspondem às demandas de medicamentos, tratamentos ou tecnologias já incorporadas ao SUS ou aos planos de saúde.

A segunda situação ocorre quando a discussão jurídica gira em torno de direitos não reconhecidos, como em tratamentos ou tecnologias sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ou sem comercialização no mercado nacional.

Do ponto de vista jurídico e dos processos que envolvem a aprovação do uso de medicamentos no Brasil, não há o que se contestar. Mas como explicar para uma criança que ela, em breve, não poderá mais jogar futebol ou andar de bicicleta?

E há, ainda, outro grau de delicadeza: juízes dependem de relatórios médicos muito bem fundamentados para emitir as decisões. Mas como eles podem julgar se o fundamento está bem sustentando se não possuem o conhecimento técnico?

Para tentar driblar a lentidão da justiça, muitas famílias fazem o mesmo que Alexandre e Karoline: começam uma campanha virtual de arrecadação de fundos.

"São milhões de reais envolvidos no tratamento, mas se o SUS incluísse a DMD na lista de doenças que o teste do pezinho detecta, o que é perfeitamente possível, o aumento no custo desse exame seria de apenas R$ 5. É uma conta que não precisa ser difícil de fazer", aponta Alexandre.

Fonte: Reportagem OP+ e Economia, 24/02/25. p.6.

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