segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

MEDICINA E LITERATURA

Meraldo Zisman (*)
Médico-Psicoterapeuta

A gente pensa uma coisa, acaba escrevendo outra e o leitor entende uma terceira coisa... e, enquanto se passa tudo isso, a  coisa propriamente dita começa a desconfiar que não foi propriamente dita.
(Mário Quintana (1906-1994)/[Caderno H])
Definições:
Literatura - é a arte de compor ou escrever textos atraentes.
Medicina - é a “ciência-arte” de tratar ou curar as doenças.
A Medicina é uma ciência porque se baseia em conhecimento adquirido por meio de acurado estudo e experimentação. É Arte porque depende da perícia com que os médicos e outros profissionais ligados à medicina aplicam seu conhecimento ao lidar com os pacientes.
Constantin Brancusi (1876-1957), um dos escultores mais importantes da primeira metade do século XX, era um romeno radicado em Paris. Começou trabalhando com a madeira, buscando o segredo da matéria. Simplificou incessantemente, repisando em sua obra uma série limitada de temas, ‘Mademoiselle Pogany, Peixe e Pássaro no Espaço’ são duas de suas obras da maturidade que parecem abranger a essência da velocidade e a sensação de liberdade humana. Costumava ele dizer aos seus discípulos: “No momento em que o artista deixa de ser criança, morre”. Verdade! É brincando que se constrói o mundo. Crianças e artistas inventam o instante da criação.
Mesmo quem não se julga artista e, entrado em anos, consiga compreender o seu Eu infantil, o que é uma abonação da criatividade, atesta com isso uma grande sensibilidade. Mas voltemos à literatura e deixemos de devaneios.
Escrever é uma profissão muito infantil. Mas, às vezes, como as brincadeiras das crianças, pode se transformar em algo muito sério. Excessivamente circunspecto é o escritor, como, geralmente, são as crianças quando estão brincando ou procurando um substituto para o seu palco de atuação social, através da escolha de seus jogos. Vários médicos que tentaram a literatura sentiram, mesmo antes de serem médicos, que lhes sobressai uma forma diferente de ser. Mas não é agora que desejo debater este tema, embora possa vir a debater a procura das personagens que habitam o nosso Eu.
Somos mais complexos do que as personagens criadas pelo teatrólogo Luigi Pirandello (1867-1936), famoso por suas peças de teatro de caráter filosófico. A maior parte dos trabalhos de Pirandello reflete uma visão pessimista da vida, porque mostra a dificuldade em se conhecer a verdade acerca dos seres humanos. Pirandello recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, de 1934. Os médicos literatos principiantes são como os “Seis Personagens à Procura de um Autor” (1921) de Pirandello, uma fantasia sobre seis pessoas que pedem para serem personagens de uma peça, mas que não têm nenhum autor para lhes orientar os passos.
Não saberia explicar quanto ou quando a magia da literatura começa a tomar corpo dentro das pessoas, principalmente quando já escolhemos uma roupagem para melhor nos representar no cenário social – a do médico.
Porém, mesmo com todos os êxitos profissionais, a contaminação de ler e escrever não nos permite abandonar a literatura ao longo da vida. Ela vai se agravando como um vírus de ação lenta: os mais infectados percebem que, não podendo dela se livrar, se deixam por ela ser levados, o mais cedo possível, quando se deparam com as mais tênues oportunidades. Os menos imaginosos devem aguardar, pois, no dizer de muitos estudiosos da alma humana: “O grande dilema humano não é a sexualidade - como desejava Sigmund Freud - e sim a sobrevivência da prole”.
Assim, ficam à espera de um maior equilíbrio para que, à musa literária possa o seu corpo ser oferecido – após garantir o sustento da sua família.
Não importa quando e como a ficção-real da literatura contamine: ela não tem cura. A doença e a terapia se confundem dentro da ânsia por ler e escrever. Buscar algo mais do que a trivialidade da sucessão dos dias nos hospitais, nos ambulatórios, nos consultórios e em tantos outros locais em que a mais social das ciências está sendo praticada ajuda, porém não cura.
Na maioria das vezes, ler e escrever são um lenitivo e um aperfeiçoamento na prática da profissão médica. Doença salvadora, durante os anos cinzentos em que a literatura e as leituras técnicas travam as batalhas.
A família e a pátria do escritor são a língua. Thomas Mann dizia ser a linguagem a placenta do literato. A linguagem é, mais do que um lar, o útero onde ele pode encontrar seus irmãos de gemiparidade. É seu refúgio infantil, sua casa e seu revestimento à sobrevivência.
Dostoievski afirmava que o mundo será salvo pela beleza. Não tenho tanta certeza.
É impossível prever qual o futuro da literatura, se algum futuro um dia tiver. Mas ouso esperar que ela consiga revelar, diante de suas incessantes indagações – sobre amor, morte, violências, guerras, covardia e inconformismo, engajamento ou falta de engajamento social, solidariedade, egoísmo, etc. – a beleza estética, ou não, de um texto bem ou mal escrito, uma promessa de bondade. Difícil de ser abandonada, mesmo em momentos de incerteza e ameaça à vida. Por mais ingênuo que isso possa parecer no mundo atual, o escritor solitário não passa de um operário do amor.
É bom rememorar que a arte literária não se prende à conjuntura que abrange a mídia e os inventos modernos, e que, do outro lado, a medicina, se não estiver em consonância com o humanismo, não passa de tecnologia. As inseguranças, de um modo geral, provêm de uma ênfase acentuada na ciência e em seus procedimentos, uma vez que as conquistas científicas aumentaram muito o conhecimento e o poder do homem. Mas as pessoas devem aprender a utilizar esse “poder” de maneira sensível e moral [palavras são palavras].
Não são poucos os profissionais de saúde que sentem o chamamento às artes, mas têm de aguardar o momento propício para atender a esse apelo. Passam a desempenhar papel diverso na vida social, porém, na primeira oportunidade, rendem-se às musas.  Os que escolhem a medicina sabem ser ela a mais social das ciências. Médicos escritores são em geral grandes leitores, apreciadores das artes, cientes de que se conhecessem apenas a medicina nem de medicina saberiam.
Não importa o êxito profissional. O médico escritor, apesar da cobrança de exclusividade da profissão abraçada, sempre encontra espaço para as coisas da arte. Assim, ao buscar o alívio do sofrimento humano, encontra o belo e, diante do belo, torna-se mais humano.
Acredito serem parceiras, a Medicina e a Literatura, nas artes e nas ciências. São ambas antropocêntricas. A Medicina possui a incumbência de aliviar a dor e a Literatura o dever de contar a vida. E para melhor fazer-me entender, tomo a passagem da carta dirigida a Marcos por seu pai, o Imperador Adriano, imaginada pela escritora Margaret Yoursenay, em Memórias de Adriano: 

'Caro Marcos,
Por indicação de meu médico, Hermógenes, despi-me. A túnica e minhas vestimentas caíram ao chão. Recostei-me para ser examinado, a hidropisia seguia a sua marcha bem com a verdade inexorável dos sessenta anos vividos. Gostava de meu médico. Hermógenes era um probo, posto que ninguém pratica a arte da Medicina por mais de 40 anos impunemente. Difícil é ser imperador diante de seu médico, e muito mais difícil permanecer homem'.
É isso tudo o que desejo dizer nesta altura de minha vida.
(*) Professor Titular da Pediatria da Universidade de Pernambuco. Psicoterapeuta. Membro da Sobrames/PE, da União Brasileira de Escritores (UBE) e da Academia Brasileira de Escritores Médicos (ABRAMES).

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