Médico-Psicoterapeuta
A gente pensa
uma coisa, acaba escrevendo outra e o leitor entende uma terceira coisa... e,
enquanto se passa tudo isso, a coisa
propriamente dita começa a desconfiar que não foi propriamente dita.
(Mário
Quintana (1906-1994)/[Caderno H])
Definições:
Literatura - é a arte de compor ou escrever textos atraentes.
Medicina - é a “ciência-arte” de tratar ou curar as doenças.
A Medicina é uma ciência porque se
baseia em conhecimento adquirido por meio de acurado estudo e experimentação. É
Arte porque depende da perícia com que os médicos e outros profissionais
ligados à medicina aplicam seu conhecimento ao lidar com os pacientes.
Constantin Brancusi (1876-1957), um
dos escultores mais importantes da primeira metade do século XX, era um romeno
radicado em Paris. Começou trabalhando com a madeira, buscando o segredo da
matéria. Simplificou incessantemente, repisando em sua obra uma série limitada
de temas, ‘Mademoiselle Pogany, Peixe e Pássaro no Espaço’ são duas de suas
obras da maturidade que parecem abranger a essência da velocidade e a sensação
de liberdade humana. Costumava ele dizer aos seus discípulos: “No momento em
que o artista deixa de ser criança, morre”. Verdade! É brincando que se
constrói o mundo. Crianças e artistas inventam o instante da criação.
Mesmo quem não se julga artista e,
entrado em anos, consiga compreender o seu Eu infantil, o que é uma abonação da
criatividade, atesta com isso uma grande sensibilidade. Mas voltemos à literatura
e deixemos de devaneios.
Escrever é uma profissão muito
infantil. Mas, às vezes, como as brincadeiras das crianças, pode se transformar
em algo muito sério. Excessivamente circunspecto é o escritor, como,
geralmente, são as crianças quando estão brincando ou procurando um substituto
para o seu palco de atuação social, através da escolha de seus jogos. Vários
médicos que tentaram a literatura sentiram, mesmo antes de serem médicos, que
lhes sobressai uma forma diferente de ser. Mas não é agora que desejo debater
este tema, embora possa vir a debater a procura das personagens que habitam o
nosso Eu.
Somos mais complexos do que as
personagens criadas pelo teatrólogo Luigi Pirandello (1867-1936), famoso por
suas peças de teatro de caráter filosófico. A maior parte dos trabalhos de
Pirandello reflete uma visão pessimista da vida, porque mostra a dificuldade em
se conhecer a verdade acerca dos seres humanos. Pirandello recebeu o Prêmio
Nobel de Literatura, de 1934. Os médicos literatos principiantes são como os
“Seis Personagens à Procura de um Autor” (1921) de Pirandello, uma fantasia
sobre seis pessoas que pedem para serem personagens de uma peça, mas que não
têm nenhum autor para lhes orientar os passos.
Não saberia explicar quanto ou
quando a magia da literatura começa a tomar corpo dentro das pessoas,
principalmente quando já escolhemos uma roupagem para melhor nos representar no
cenário social – a do médico.
Porém, mesmo com todos os êxitos
profissionais, a contaminação de ler e escrever não nos permite abandonar a
literatura ao longo da vida. Ela vai se agravando como um vírus de ação lenta:
os mais infectados percebem que, não podendo dela se livrar, se deixam por ela
ser levados, o mais cedo possível, quando se deparam com as mais tênues
oportunidades. Os menos imaginosos devem aguardar, pois, no dizer de muitos
estudiosos da alma humana: “O grande dilema humano não é a sexualidade - como
desejava Sigmund Freud - e sim a sobrevivência da prole”.
Assim, ficam à espera de um maior
equilíbrio para que, à musa literária possa o seu corpo ser oferecido – após
garantir o sustento da sua família.
Não importa quando e como a
ficção-real da literatura contamine: ela não tem cura. A doença e a terapia se
confundem dentro da ânsia por ler e escrever. Buscar algo mais do que a
trivialidade da sucessão dos dias nos hospitais, nos ambulatórios, nos
consultórios e em tantos outros locais em que a mais social das ciências está
sendo praticada ajuda, porém não cura.
Na maioria das vezes, ler e escrever
são um lenitivo e um aperfeiçoamento na prática da profissão médica. Doença
salvadora, durante os anos cinzentos em que a literatura e as leituras técnicas
travam as batalhas.
A família e a pátria do escritor são
a língua. Thomas Mann dizia ser a linguagem a placenta do literato. A linguagem
é, mais do que um lar, o útero onde ele pode encontrar seus irmãos de
gemiparidade. É seu refúgio infantil, sua casa e seu revestimento à
sobrevivência.
Dostoievski afirmava que o mundo
será salvo pela beleza. Não tenho tanta certeza.
É impossível prever qual o futuro da
literatura, se algum futuro um dia tiver. Mas ouso esperar que ela consiga
revelar, diante de suas incessantes indagações – sobre amor, morte, violências,
guerras, covardia e inconformismo, engajamento ou falta de engajamento social,
solidariedade, egoísmo, etc. – a beleza estética, ou não, de um texto bem ou
mal escrito, uma promessa de bondade. Difícil de ser abandonada, mesmo em
momentos de incerteza e ameaça à vida. Por mais ingênuo que isso possa parecer
no mundo atual, o escritor solitário não passa de um operário do amor.
É bom rememorar que a arte literária
não se prende à conjuntura que abrange a mídia e os inventos modernos, e que,
do outro lado, a medicina, se não estiver em consonância com o humanismo, não
passa de tecnologia. As inseguranças, de um modo geral, provêm de uma ênfase
acentuada na ciência e em seus procedimentos, uma vez que as conquistas
científicas aumentaram muito o conhecimento e o poder do homem. Mas as pessoas
devem aprender a utilizar esse “poder” de maneira sensível e moral [palavras são
palavras].
Não são poucos os profissionais de
saúde que sentem o chamamento às artes, mas têm de aguardar o momento propício
para atender a esse apelo. Passam a desempenhar papel diverso na vida social,
porém, na primeira oportunidade, rendem-se às musas. Os que escolhem a medicina sabem ser ela a
mais social das ciências. Médicos escritores são em geral grandes leitores, apreciadores
das artes, cientes de que se conhecessem apenas a medicina nem de medicina
saberiam.
Não importa o êxito profissional. O
médico escritor, apesar da cobrança de exclusividade da profissão abraçada,
sempre encontra espaço para as coisas da arte. Assim, ao buscar o alívio do
sofrimento humano, encontra o belo e, diante do belo, torna-se mais humano.
Acredito serem parceiras, a Medicina
e a Literatura, nas artes e nas ciências. São ambas antropocêntricas. A
Medicina possui a incumbência de aliviar a dor e a Literatura o dever de contar
a vida. E para melhor fazer-me entender, tomo a passagem da carta dirigida a Marcos
por seu pai, o Imperador Adriano, imaginada pela escritora Margaret Yoursenay,
em Memórias de Adriano:
'Caro Marcos,
Por indicação de meu médico, Hermógenes, despi-me. A túnica e
minhas vestimentas caíram ao chão. Recostei-me para ser examinado, a hidropisia
seguia a sua marcha bem com a verdade inexorável dos sessenta anos vividos.
Gostava de meu médico. Hermógenes era um probo, posto que ninguém pratica a
arte da Medicina por mais de 40 anos impunemente. Difícil é ser imperador
diante de seu médico, e muito mais difícil permanecer homem'.
É isso tudo o que desejo dizer nesta
altura de minha vida.
(*) Professor Titular da Pediatria da Universidade de Pernambuco.
Psicoterapeuta. Membro da Sobrames/PE, da União Brasileira de Escritores (UBE)
e da Academia Brasileira de Escritores Médicos (ABRAMES).
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