quarta-feira, 15 de abril de 2015

A vinha, o vinho e a determinação social dos vícios

José Jackson Coelho Sampaio (*)

Na caverna pré-histórica, em degelo de primavera, quanta fruta ou grão apodreceu e fermentou nas poças ao fundo das lages, mas, antes mesmo que a água fluísse pelos riachos, após a quebra das crostas de gelo, alguém provou o líquido das poças e, mesmo repugnando o gosto, apaziguou a sede, sentiu estranha alegria, uma tontura exaltada, luzes na escuridão, e pode ter ligado a experiência com a bebida. O fenômeno e a experiência dele decorrente eram ocasionais e não necessariamente associáveis: uns não gostaram; outros gostaram, mas esqueceram; poucos ficaram atrás de novas provas e, obcecados, foram surpreendidos pelos predadores; além disso, por milênios, não se conseguiu reproduzir o fenômeno, artificialmente.
Nesses milênios descobriu-se a vinha, a possibilidade de plantar vinha, a técnica para tirar vinho da vinha e até São Martinho, 400 anos depois de Cristo, contribuiu para o processo ao perceber como a vinha melhorava depois de ser mastigada, isto é, podada, pelo seu burro de estimação. Nos mosteiros e nas famílias, em fainas diárias e submissas aos caprichos de ventos, chuvas e mudanças do clima, com a técnica dos barris de uvas pisadas, produzia-se vinho para o consumo dos senhores da terra, excedente para um pequeno comércio e outro para uso do próprio produtor.
A liberdade dos nobres para ócio e hedonismo os predispunha à repetição, daí o risco de embriaguez e vício. Aos camponeses sobrava a menor quantidade, a pior qualidade e a proibição do prazer. A técnica disponível resultava em produção restrita e sem circulação significativa fora de cada gleba. O forte sistema de crenças gerava repressão e culpa pela transgressão.
Entre os ricos, por facilidade e excesso, e entre os pobres, pela sedação da vida árdua e culpada, surgem os bêbados na paisagem social da Idade Média, herdeiros de Noé, concebidos como vítimas das fraquezas morais e do assédio dos demônios, incompetentes para restringir o uso do vinho aos dias de festa e ao rito das missas.
(*) Professor titular em saúde pública e reitor da Uece.
Publicado In: O Povo, Opinião, de 14/2/15. p.6.

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