Na caverna pré-histórica, em degelo de primavera, quanta
fruta ou grão apodreceu e fermentou nas poças ao fundo das lages, mas, antes
mesmo que a água fluísse pelos riachos, após a quebra das crostas de gelo,
alguém provou o líquido das poças e, mesmo repugnando o gosto, apaziguou a
sede, sentiu estranha alegria, uma tontura exaltada, luzes na escuridão, e pode
ter ligado a experiência com a bebida. O fenômeno e a experiência dele
decorrente eram ocasionais e não necessariamente associáveis: uns não gostaram;
outros gostaram, mas esqueceram; poucos ficaram atrás de novas provas e,
obcecados, foram surpreendidos pelos predadores; além disso, por milênios, não
se conseguiu reproduzir o fenômeno, artificialmente.
Nesses milênios descobriu-se a vinha, a possibilidade de
plantar vinha, a técnica para tirar vinho da vinha e até São Martinho, 400 anos
depois de Cristo, contribuiu para o processo ao perceber como a vinha melhorava
depois de ser mastigada, isto é, podada, pelo seu burro de estimação. Nos
mosteiros e nas famílias, em fainas diárias e submissas aos caprichos de ventos,
chuvas e mudanças do clima, com a técnica dos barris de uvas pisadas,
produzia-se vinho para o consumo dos senhores da terra, excedente para um
pequeno comércio e outro para uso do próprio produtor.
A liberdade dos nobres para ócio e hedonismo os predispunha
à repetição, daí o risco de embriaguez e vício. Aos camponeses sobrava a menor
quantidade, a pior qualidade e a proibição do prazer. A técnica disponível
resultava em produção restrita e sem circulação significativa fora de cada
gleba. O forte sistema de crenças gerava repressão e culpa pela transgressão.
Entre os ricos, por facilidade e excesso, e entre os
pobres, pela sedação da vida árdua e culpada, surgem os bêbados na paisagem
social da Idade Média, herdeiros de Noé, concebidos como vítimas das fraquezas
morais e do assédio dos demônios, incompetentes para restringir o uso do vinho
aos dias de festa e ao rito das missas.
(*) Professor
titular em saúde pública e reitor da Uece.
Publicado In: O
Povo, Opinião, de 14/2/15. p.6.
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