quinta-feira, 23 de junho de 2016

JOÃO SEMEDO


Pedro Henrique Saraiva Leão (*)
Parece título para conto de aventura infantojuvenil, mas não é. João Curvo Semedo foi médico notável no período barroco (século XVII)  português. Formado na Universidade de Coimbra em 1662, suas receitas combinavam os princípios hipocráticos e galênicos com a alquimia (dos remédios polivalentes, físicos e morais) e a magia, então vigentes desde a fundação das universidades, no século XIII. Exceleu na Clínica, e pioneiramente no emprego de medicamentos químicos, usando amiúde (com frequência) a quina, o mercúrio, e o antimônio.
Este fora inventado por um facultativo (médico) espanhol, e popularizado como remédio secreto, os “Pós de Quintiliano”. Em 6/2005, Murilo Martins, comentando uma comédia de Molière, referiu-se a um monge beneditino que ministrava sais desse metal a porcos, causando-lhes obesidade; experimentando-os em monges desnutridos, estes logo faleciam. Portanto, a palavra antimônio seria originária do vocábulo “anti-monk”, ou antimonge! (“Literapia” 12:39-40). Modernamente, o antimônio é usado na Leishmaniose (N–metil glucantine).
João Semedo revelou-se igualmente como introdutor das meizinhas no Portugal seiscentista. Para outro pesquisador cearense, professor Edísio Tavares, essas mezinhas eram comercializadas pelas boticas (farmácias àquela época) como folhas, flores, raízes, cascas e extratos fluidos (“Remédios antigos. Uma breve história da Farmacoterapia”. Anais da Academia Cearense de Medicina, IX, no. 9, 05/1998 – 05/2000. A propósito, lembramos nosso artigo “Chás.com”, O POVO, 10/9/2008).
Além desses simples, i.e., plantas medicinais em estado natural, o fetichismo então predominante incentivava o culto de entidades espirituais supostamente representadas por insetos, sapos, peles de crocodilos, excrementos, urina de cavalo, sangue menstrual, casca de ovo, penas de avestruz. Ainda consoante Tavares, E, no século XVII coube a Robert Boyle expurgar a farmacopeia inglesa dessas substâncias, mas o mesmo conservou como útil “sola de sapatos velhos gastos por longas distâncias” (lírico!). Curiosamente, no seu “Vocabulário Português e Latino”, Coimbra, 1712, Rafael Bluteau listou a palavra “mesinheiro” como equivalente a médico. Outros sinônimos seriam físico, pulsista, homicida tolerado, assassino impunido, árbitro dos mortais!
Este atraente tema pode ser visitado com mais vagar nas obras dos cearenses Josa Magalhães, Eduardo Campos, Florival Seraine, e do soteropolitano (baiano) Fernando São Paulo, lente (professor) de terapêutica naquele estado (“Linguagem médica popular no Brasil”, 2 vols., Editora Itapuã, Salvador, 1970). Ecoando seu tempo, Semedo, adepto da magia, professava a teoria dos humores, atribuída a Hipócrates, Galeno (?), ou Políbio, sobrinho e aluno daquele. Tais líquidos corporais, daminhos, seriam o sangue, a bile amarela, a fleuma (flegma, ou pituita), e a bile negra, ou atrabílis.
Destarte, o dr. João Curvo Semedo influenciou deveras a medicina ulissiponence (de Ulissipo, hoje Lisboa). De sua obra (nove volumes) ficou mais conhecida “Polianteia Medicinal”, de 1680. Denotando a típica ingenuidade, ou singeleza da língua lusitana, seu livro derradeiro foi intitulado “Atalaya da vida contra as hostilidades da morte”. Faço ponto aqui. Parece “paresse” (preguiça em francês), mas não é.
(*) Professor Emérito da UFC. Titular das Academias Cearense de Letras, de Medicina e de Médicos Escritores.
Fonte: O Povo, Opinião, de 25/5/2016. p.10.

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