quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

PÃO COM MOLHO (Quando Passei a me Interessar pela Fome)


Meraldo Zisman (*)
Médico-Psicoterapeuta
Andava eu pelos meus oito anos de idade, éramos pobres e morávamos em uma modesta rua sem pavimentação, ironicamente denominada: ‘Rua da Alegria’, no bairro da Boa Vista. Quando eu chegava da escola um pouco mais cedo do que de costume, sentia o cheiro de carne guisada sendo preparada para o almoço. Mãezinha abria, então, um pão francês dormido, cortava-o ao meio, no comprimento, passava cada uma das partes naquele molho fervente e me dava para comer, pedindo que eu esperasse a hora da refeição. Esse molho possuía um gosto especial que somente o paladar de uma criança é capaz de sentir. Delícia!
A comida em minha casa (de porta e janela) não era muita. Vim aprender mais tarde, lendo os livros de Josué de Castro, que a fome de cada um é egoísta e pouco se importa com fomes dos demais. E que menino pobre tem falta de apetite somente quando não há comida em casa.
Certa manhã, ao voltar da escola, eu vi, sentada na calçada de minha casa, uma senhora e um menino maltrapilhos, bem magros, com a pele cor de ocre, típica dos pobres do Nordeste. Não saberia dizer se eles eram morenos desbotados ou brancos encardidos. Em suma, ambos tinham a idade e a cor da necessidade. O menino podia ter, no máximo, a minha idade; mas, a mãe era tão velha quanto a fome...
Naqueles tempos, pobre era realmente pobre e a fome não era falsificada. Ademais, não se alugava crianças para enganar a caridade pública. Cola de sapateiro servia, apenas, para se colar as solas dos sapatos, pois só nas festas de Natal é que se tinha direito a um par de “pisante” novo.
Nos dias de quinta-feira, lá em casa, comia-se carne assada. Quando cheguei da escola naquele dia, fui logo gritando: Mãe, cheguei! Cadê meu pão com molho? E ela respondeu: Já vai, meu filho, deixa de pressa! Primeiro, vá lavar as mãos e vem me dar um beijo!
Obedeci as ordens e agarrei o pão, com o molho a escorrer. Mas, quando ia dar a primeira dentada, lembrei-me do menino da calçada. Abri a porta da frente e estendi-lhe a comida. O menino pulou de alegria, com os olhos repletos de fome.
Entrei em casa e fui chorar no quarto. Desconfiada, minha mãe me perguntou: Filhinho, o que foi que aconteceu? Eu respondi: Nada mãe, me deu vontade de chorar e pronto. Ouvi quando ela falou bem baixinho: Esse menino é muito sensível, ainda vai sofrer muito na vida!
(*) Professor Titular da Pediatria da Universidade de Pernambuco. Psicoterapeuta. Membro da Sobrames/PE, da União Brasileira de Escritores (UBE) e da Academia Brasileira de Escritores Médicos (ABRAMES).

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