Meraldo Zisman (*)
Médico-Psicoterapeuta
Andava eu pelos meus oito anos de idade, éramos pobres e
morávamos em uma modesta rua sem pavimentação, ironicamente denominada: ‘Rua da
Alegria’, no bairro da Boa Vista. Quando eu chegava da escola um pouco mais
cedo do que de costume, sentia o cheiro de carne guisada sendo preparada para o
almoço. Mãezinha abria, então, um pão francês dormido, cortava-o ao meio, no
comprimento, passava cada uma das partes naquele molho fervente e me dava para
comer, pedindo que eu esperasse a hora da refeição. Esse molho possuía um gosto
especial que somente o paladar de uma criança é capaz de sentir. Delícia!
A comida em minha casa (de porta e janela) não era muita.
Vim aprender mais tarde, lendo os livros de Josué de Castro, que a fome de cada
um é egoísta e pouco se importa com fomes dos demais. E que menino pobre tem
falta de apetite somente quando não há comida em casa.
Certa manhã, ao voltar da escola, eu vi, sentada na
calçada de minha casa, uma senhora e um menino maltrapilhos, bem magros, com a
pele cor de ocre, típica dos pobres do Nordeste. Não saberia dizer se eles eram
morenos desbotados ou brancos encardidos. Em suma, ambos tinham a idade e a cor
da necessidade. O menino podia ter, no máximo, a minha idade; mas, a mãe era
tão velha quanto a fome...
Naqueles tempos, pobre era realmente pobre e a fome não
era falsificada. Ademais, não se alugava crianças para enganar a caridade
pública. Cola de sapateiro servia, apenas, para se colar as solas dos sapatos,
pois só nas festas de Natal é que se tinha direito a um par de “pisante” novo.
Nos dias de quinta-feira, lá em casa, comia-se carne
assada. Quando cheguei da escola naquele dia, fui logo gritando: Mãe, cheguei!
Cadê meu pão com molho? E ela respondeu: Já vai, meu filho, deixa de pressa!
Primeiro, vá lavar as mãos e vem me dar um beijo!
Obedeci as ordens e agarrei o pão, com o molho a
escorrer. Mas, quando ia dar a primeira dentada, lembrei-me do menino da
calçada. Abri a porta da frente e estendi-lhe a comida. O menino pulou de
alegria, com os olhos repletos de fome.
Entrei em casa e fui chorar no quarto. Desconfiada, minha
mãe me perguntou: Filhinho, o que foi que aconteceu? Eu respondi: Nada mãe, me
deu vontade de chorar e pronto. Ouvi quando ela falou bem baixinho: Esse menino
é muito sensível, ainda vai sofrer muito na vida!
(*) Professor Titular da Pediatria da Universidade de Pernambuco.
Psicoterapeuta. Membro da Sobrames/PE, da União Brasileira de Escritores (UBE)
e da Academia Brasileira de Escritores Médicos (ABRAMES).
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