quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Resistência da democracia aos maus governantes


Por Paulo Elpídio de Menezes Neto (*)
“Data venia”, permito-me a invocação vaidosa, banhada na retórica forense para mergulhar em conjecturas ambiciosas (pretensiosas, dirão os mais críticos). Nesse nado de escafandrista, fisguei dois vocábulos postos em merecido sossego. Começo por “ordália”, assemelhada, na Bíblia, a “águas da amargura” ou “juízo divino”. Essa prática foi muito usada nos julgamentos de infidelidade, nos quais os juízes não interferiam, cumpria-se a vontade de Deus. A mulher adúltera recebia, com sincera isenção judicante, a penalidade merecida, conforme impunha o Livro dos Números: suspeitada de adultério, a pecadora deveria beber de água contaminada; culpada, morreria, com o ventre inchado e a coxa consumida; se inocente, sobreviveria e teria filhos.
O segundo vocábulo, “demo”, de origem distante e imprecisa, vem a ser variante de designações perdidas com o correr dos tempos como registro de “povo”. Datam da antiguidade grega alguns conceitos léxicos e sociais que distinguem o povo, entidade vaga, por vezes em oposição aos governantes, outras como entidade soberana. Os escritores dessa idade remota pouco tinham de sociólogos ou politicólogos; deixavam-se guiar pelos caprichos estilísticos na escrita, assim o exigiam as leis da retórica. No mais das vezes, empregavam um termo pelo outro, sem qualquer preocupação com o seu significado ou coerência, que não fosse a elegância do texto.
Reconhecemos “democracia” como paradigma de certezas e virtudes e brandimo-lo contra tudo que a pudesse desvirtuar ou comprometer. Sobressaem, entretanto, nessa semântica de conceitos, valores e pressupostos excludentes, segundo a métrica de nossa visão, uma espécie de “água da amargura”, quem não acreditasse em suas peregrinas virtudes morreria, contaminado pelas impurezas da negação. Os modelos e variantes da democracia se sucederam, e já não coincidem, tampouco se ajustam aos ideais que a inspiraram. O “neopopulismo” de esquerda ou de direita apoderou-se, dissimuladamente, dos governos latino-americanos e de velhas nações europeias, de cara nova, e promessas sedutoras.
O “neopopulismo” representa manifestações contestatárias, dominadas por bandeiras ilusórias, empunhadas por chefes carismáticos.
Os novos “condottieres”, os “caudillos” repaginados, reproduzem-se à sombra da incultura política e da esperteza de lideranças redentoras, e exacerbam paixões identitárias: protecionismo, nacionalismo, intervencionismo e autoritarismo. Esses profetas da Revelação reproduziram-se, nos últimos tempos, diante da inércia fatalista das massas crédulas. A confiança brota, assim, do povo convencido pelas pressões de “marketing político, da “ordália” dos desígnios do poder e de uma cultura “pós-factual”, ideologizada, que tudo contamina.
O “neopopulismo” reflete lenta e indistinta transmutação dos ideais da sociedade dominada por irresistível tentação autoritária, compartilhada incestuosamente pela direita da esquerda e pela esquerda da direita. A democracia tem chances reais de sobreviver em uma sociedade bem governada. Na medida em que a mediocridade dos atores públicos for contida pela “inteligência” coletiva do sistema político.
(*) Cientista político. Membro da Academia Brasileira de Educação e do Instituto do Ceará.
Fonte: O Povo, 1/02/17. Opinião, p.8.

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