Onte, ontonte, ternantonte...
Praieira das Caraúbas, na Caucaia, chamavam-na
Muritúria. "No falar a mais linda canção" matuta que já ouvi.
"Moradêra" do sítio de meus avós, onde também viviam as tias
vitalinas Chiquinha e Maria, foi quem primeiro me ensinou cearês. Dizia que
curava "boquêra" com pedra ume; que não usava "gosmético, desses
de 'impuzuar' a cara", para não deixar as carnes "só o langãe
(langanho) véi".
À boca miúda, a moça não tinha o juízo certo.
"É mental", diagnosticava tia Chiquinha. "Doida do caneco
rodar", acentuava tia Maria.
- A
senhora tá exagerando? - ponderava mamãe, diante de uma tia psiquiatra.
- Exagerando? Pois me diga como é que uma
criatura dessas escapa milagrosamente de morrer na virada daquele ônibus na BR
e diz ao policial que preferia bater a caçuleta a ter mostrado o fundo das
calças ao povo que ia passando no local! Diga!
Mordida de abelha
O fato é que eu gostava da Muritúria, por vários
motivos: as tapiocas de coco que fazia no forno da farinhada; o café com
manjirioba, as peixadas de saúna e, principalmente, o feijão na água grande
(escoteiro - puro), com um ou outro gorgulho afogado, segurando sem forças a
folhinha do cheiro verde, na panela de barro imensa, acocorada no forno à lenha.
Como se hoje fosse, gravei na memória essa
conversa dela com mamãe, nas Caraúbas dos anos 60. Reclamava.
-
Minha fia, foi distrôço grande demais aqui em casa, ontonte... ou foi
ternantonte!
- Que houve, mulher? Tem a ver com essas
papócas no teu corpo?
- Sim.
Um enxame de capuxu (vespa que produz bom mel). Estavam num furgimuêro acolá no
terreiro. As bicha invadiro a cozinha e ferroaro o povo daqui todo. Surra de
ferrão pra dez, eu levei sozinha!
- E como escaparam?
-
Quando atufaiemo o furmiguêro com mulambo de pano, toquemo fogo, tiremo o
capuxu com mel, abêia e tudo. Aí bebemo ele, bem docim. Respeite!
Que horas poderão serão
Ouvíamos as histórias admirados com os detalhes,
o modo ingênuo de Muritúria se expressar. Vendo que mamãe se levantava do
tamborete, perguntou se ela "já estava se balançando pra ir embora".
Que não fosse, tinha merenda para todos.
-
Pegue banana coruda, tire a roupa de duas ou três e coma sem-vergonhamente,
enquanto eu vou dar carga no jumento.
- Cuma? - me invoquei com a frase dela.
- Botar o bichim pra comer... Que horas
poderão serão, madinha?
-
Mei diinha! - respondeu mãe, mirando o pulso.
- Vou cuidar de terminar o dicumê. Tamo tudo
com o bucho colado no espinhaço!
A pomba do Divino
Terminado o babaçu, beirando uma da tarde, hora
de voltar a Fortaleza. Uma riqueza a visita ao Pai Doca e as tias Chiquinha e
Maria, casa onde morava dona Muritúria. "Parece cachorro magro: comeu, vai
embora!", tascou ela, vendo a gente partir.
-
Barriga lá em cima, né? - falou feliz.
- Comida excelente, mas é hora. Caminho de
volta é longo. Já, já é noite.
-
Ah, madinha! Quando vier da próxima vez, traga um lificador (liquidificador).
Pode ser ou tá difícil?
- Marrumeno.
-
Pois vão com Deus e a pomba do Divino, que é branca!
E fumo...
Fonte: O POVO, de 13/06/2019.
Coluna “Crônicas”, de Tarcísio Matos.
p.2.
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