sexta-feira, 8 de maio de 2020

AOS VIVOS: "Onte, ontonte, ternantonte..." ... e outros causos


Onte, ontonte, ternantonte...
Praieira das Caraúbas, na Caucaia, chamavam-na Muritúria. "No falar a mais linda canção" matuta que já ouvi. "Moradêra" do sítio de meus avós, onde também viviam as tias vitalinas Chiquinha e Maria, foi quem primeiro me ensinou cearês. Dizia que curava "boquêra" com pedra ume; que não usava "gosmético, desses de 'impuzuar' a cara", para não deixar as carnes "só o langãe (langanho) véi".
À boca miúda, a moça não tinha o juízo certo. "É mental", diagnosticava tia Chiquinha. "Doida do caneco rodar", acentuava tia Maria.
- A senhora tá exagerando? - ponderava mamãe, diante de uma tia psiquiatra.
- Exagerando? Pois me diga como é que uma criatura dessas escapa milagrosamente de morrer na virada daquele ônibus na BR e diz ao policial que preferia bater a caçuleta a ter mostrado o fundo das calças ao povo que ia passando no local! Diga!
Mordida de abelha
O fato é que eu gostava da Muritúria, por vários motivos: as tapiocas de coco que fazia no forno da farinhada; o café com manjirioba, as peixadas de saúna e, principalmente, o feijão na água grande (escoteiro - puro), com um ou outro gorgulho afogado, segurando sem forças a folhinha do cheiro verde, na panela de barro imensa, acocorada no forno à lenha.
Como se hoje fosse, gravei na memória essa conversa dela com mamãe, nas Caraúbas dos anos 60. Reclamava.
- Minha fia, foi distrôço grande demais aqui em casa, ontonte... ou foi ternantonte!
- Que houve, mulher? Tem a ver com essas papócas no teu corpo?
- Sim. Um enxame de capuxu (vespa que produz bom mel). Estavam num furgimuêro acolá no terreiro. As bicha invadiro a cozinha e ferroaro o povo daqui todo. Surra de ferrão pra dez, eu levei sozinha!
- E como escaparam?
- Quando atufaiemo o furmiguêro com mulambo de pano, toquemo fogo, tiremo o capuxu com mel, abêia e tudo. Aí bebemo ele, bem docim. Respeite!
Que horas poderão serão
Ouvíamos as histórias admirados com os detalhes, o modo ingênuo de Muritúria se expressar. Vendo que mamãe se levantava do tamborete, perguntou se ela "já estava se balançando pra ir embora". Que não fosse, tinha merenda para todos.
- Pegue banana coruda, tire a roupa de duas ou três e coma sem-vergonhamente, enquanto eu vou dar carga no jumento.
- Cuma? - me invoquei com a frase dela.
- Botar o bichim pra comer... Que horas poderão serão, madinha?
- Mei diinha! - respondeu mãe, mirando o pulso.
- Vou cuidar de terminar o dicumê. Tamo tudo com o bucho colado no espinhaço!
A pomba do Divino
Terminado o babaçu, beirando uma da tarde, hora de voltar a Fortaleza. Uma riqueza a visita ao Pai Doca e as tias Chiquinha e Maria, casa onde morava dona Muritúria. "Parece cachorro magro: comeu, vai embora!", tascou ela, vendo a gente partir.
- Barriga lá em cima, né? - falou feliz.
- Comida excelente, mas é hora. Caminho de volta é longo. Já, já é noite.
- Ah, madinha! Quando vier da próxima vez, traga um lificador (liquidificador). Pode ser ou tá difícil?
- Marrumeno.
- Pois vão com Deus e a pomba do Divino, que é branca!
E fumo...
Fonte: O POVO, de 13/06/2019. Coluna “Crônicas”, de Tarcísio Matos. p.2.

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