Por Weiber Xavier
(*)
Maria trabalha há muitos anos no
apartamento de Mary, cuidando da casa e dos filhos. Mary chegou há pouco da
Itália, onde esteve celebrando seu aniversário na Toscana com amigos. Mary já
chegou indisposta, mas pensou tratar-se de fadiga da programação intensa da
viagem ou jet leg e procurou descansar em casa, recebendo toda a atenção de
Maria com chás e comidinha caseira especial. Mesmo assim, indisposta e recém
chegada de viagem, Mary foi ao shopping, ao cabeleireiro, ao jogo de baralho
com as amigas e a uma festa beneficente...
Após a persistência da indisposição
associada à febre e tosse com desconforto respiratório, Mary resolve ligar
preocupada para seu médico particular que recomenda que a mesma procure o
hospital. Imediatamente ao chegar no hospital é admitida à UTI e recebe todos
os cuidados médicos, possuiu um plano de saúde particular que a deixa menos
intranquila por disponibilizar os serviços médicos de que precisa nessa
pandemia.
Maria ao chegar em casa na periferia
onde vive com mais seis pessoas fica preocupada pelo intenso noticiário na TV
sobre a pandemia de coronavírus. Sua casa não possui saneamento básico, como
muitas do bairro onde mora e além da dengue surge mais uma preocupação: será
que poderá ter pego o coronavírus da patroa?
Após sete dias no hospital, Mary tem
alta já sentindo-se bem melhor e retorna ao seu confortável apartamento para
continuar o tratamento e isolamento social. Maria sente-se nauseada e com
perturbação intestinal além de tosse seca e fadiga. Liga para a patroa avisando
que não poderá ir trabalhar e resolve procurar o posto de saúde mais próximo de
casa. Infelizmente só poderá ser atendida no outro dia pois já acabaram os
atendimentos agendados. Resolve então procurar a UPA e lá, chega já com febre e dificuldade
para respirar de forma súbita. Os médicos resolvem entubá-la de imediato e
solicitam vaga de UTI. A Central de Leitos informa que já existem pelo menos
trinta pessoas à espera de um leito de UTi e, portanto, Maria deve aguardar num
leito improvisado de "UTI" na UPA. Começa a via crucis da família de
Maria à procura de uma vaga de UTI nos hospitais públicos até que, após uma
semana, consegue-se a tão sonhada vaga. Na UTI, Maria chega com pneumonia grave
e múltiplas disfunções orgânicas. Apesar das condições de trabalho precárias e
falta crônica de insumos a equipe multiprofissional tenta com esforço hercúleo
o melhor tratamento para Maria que está gravíssima. O teste para Covid-19 não
consegue ser realizado, mesmo estando internada em estado grave.
"Estranho", pensa um familiar, já que viu na TV um político sem
sintomas ter feito o exame mais de três vezes... O tratamento não surte efeito
e a situação de Maria deteriora a cada dia até que finalmente falece na UTI,
sozinha, em isolamento. A família que não a vê desde a internação na UTI devido
a quarentena é avisada por telefone e chocada se dirige ao hospital. Lá é
informada que devido à suspeita de Covid-19 deverá providenciar o enterro o
mais breve possível, dentro de uma hora, de acordo com a nova portaria
sanitária, sem direito a velório e com o caixão lacrado.
Enquanto isso, João, uma das seis
pessoas que moravam com Maria, começa a sentir sintomas de gripe...
Às muitas Marias do nosso País tão
desigual, na doença e na vida, que merecem dignidade, na saúde muito
particularmente, pois só assim seremos uma pátria amada... #MudaBrasil.
(*) Médico e professor de Medicina da UniChristus.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 24/4/2020. Opinião. p.15.
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