terça-feira, 26 de maio de 2020

MARIA E MARY


Por Weiber Xavier (*)
Maria trabalha há muitos anos no apartamento de Mary, cuidando da casa e dos filhos. Mary chegou há pouco da Itália, onde esteve celebrando seu aniversário na Toscana com amigos. Mary já chegou indisposta, mas pensou tratar-se de fadiga da programação intensa da viagem ou jet leg e procurou descansar em casa, recebendo toda a atenção de Maria com chás e comidinha caseira especial. Mesmo assim, indisposta e recém chegada de viagem, Mary foi ao shopping, ao cabeleireiro, ao jogo de baralho com as amigas e a uma festa beneficente...
Após a persistência da indisposição associada à febre e tosse com desconforto respiratório, Mary resolve ligar preocupada para seu médico particular que recomenda que a mesma procure o hospital. Imediatamente ao chegar no hospital é admitida à UTI e recebe todos os cuidados médicos, possuiu um plano de saúde particular que a deixa menos intranquila por disponibilizar os serviços médicos de que precisa nessa pandemia.
Maria ao chegar em casa na periferia onde vive com mais seis pessoas fica preocupada pelo intenso noticiário na TV sobre a pandemia de coronavírus. Sua casa não possui saneamento básico, como muitas do bairro onde mora e além da dengue surge mais uma preocupação: será que poderá ter pego o coronavírus da patroa?
Após sete dias no hospital, Mary tem alta já sentindo-se bem melhor e retorna ao seu confortável apartamento para continuar o tratamento e isolamento social. Maria sente-se nauseada e com perturbação intestinal além de tosse seca e fadiga. Liga para a patroa avisando que não poderá ir trabalhar e resolve procurar o posto de saúde mais próximo de casa. Infelizmente só poderá ser atendida no outro dia pois já acabaram os atendimentos agendados. Resolve então procurar a UPA e lá, chega já com febre e dificuldade para respirar de forma súbita. Os médicos resolvem entubá-la de imediato e solicitam vaga de UTI. A Central de Leitos informa que já existem pelo menos trinta pessoas à espera de um leito de UTi e, portanto, Maria deve aguardar num leito improvisado de "UTI" na UPA. Começa a via crucis da família de Maria à procura de uma vaga de UTI nos hospitais públicos até que, após uma semana, consegue-se a tão sonhada vaga. Na UTI, Maria chega com pneumonia grave e múltiplas disfunções orgânicas. Apesar das condições de trabalho precárias e falta crônica de insumos a equipe multiprofissional tenta com esforço hercúleo o melhor tratamento para Maria que está gravíssima. O teste para Covid-19 não consegue ser realizado, mesmo estando internada em estado grave. "Estranho", pensa um familiar, já que viu na TV um político sem sintomas ter feito o exame mais de três vezes... O tratamento não surte efeito e a situação de Maria deteriora a cada dia até que finalmente falece na UTI, sozinha, em isolamento. A família que não a vê desde a internação na UTI devido a quarentena é avisada por telefone e chocada se dirige ao hospital. Lá é informada que devido à suspeita de Covid-19 deverá providenciar o enterro o mais breve possível, dentro de uma hora, de acordo com a nova portaria sanitária, sem direito a velório e com o caixão lacrado.
Enquanto isso, João, uma das seis pessoas que moravam com Maria, começa a sentir sintomas de gripe...
Às muitas Marias do nosso País tão desigual, na doença e na vida, que merecem dignidade, na saúde muito particularmente, pois só assim seremos uma pátria amada... #MudaBrasil. 
(*) Médico e professor de Medicina da UniChristus.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 24/4/2020. Opinião. p.15.

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