Em outubro do corrente ano, a Turma Carlos
Chagas de médicos diplomados pela Universidade Federal do Ceará, em dezembro de
1971, celebra o seu cinquentenário de formatura. No bojo da programação comemorativa
traçada por essa turma, da qual fazem parte quatro ilustres membros da Academia
Cearense de Medicina (ACM), os doutores Adriana Costa, Lúcia Alcântara, Roberto
Bruno Filho e Roberto Misici, foi incluída uma sessão de fortes lembranças,
quando o Dr. Paulo Gurgel Carlos da Silva, em nome dos seus colegas, prestará
homenagem póstuma a 17 companheiros de jornada que partiram, antecipadamente,
ao reencontro do Pai, deixando oitenta iátricos sobreviventes submersos na imorredoura
saudade.
Dentre os falecidos a prantear, está o Prof.
Dr. Carlos Maurício de Castro Costa, o “Mauricinho”, que deixou esse mundo
menor ainda menor, com a sua inopinada partida, em 15/03/2010, minado por uma
doença traiçoeira, contra a qual lutou, obstinadamente, durante um ano, sem
demonstrar abatimento ou revolta, mas tocando, com denodo, os seus muitos
afazeres acadêmicos, tanto na assistência, no Serviço de Neurologia do Hospital
Universitário Walter Cantídio, como na pesquisa, no Programa de Pós-Graduação
em Farmacologia da UFC.
Dele, além das lembranças de um passado que
remonta à minha meninice, como catecúmeno e membro da “Cruzadinha” da Igreja de
Nossa Senhora das Dores, no bairro Otávio Bonfim, em Fortaleza, passando pelos
trabalhos que em conjunto executamos na feitura de cursos, congressos e
concursos, guardarei na memória os registros dos nossos dois últimos encontros,
ocorridos em 26 e 27 de fevereiro de 2010, quando ele esteve hospitalizado no Instituto
do Câncer do Ceará (ICC).
No dia 26/02/2010, sexta-feira, ao saber do
seu internamento, fui visitá-lo, colocando-me à sua disposição, caso tivesse
alguma necessidade, e entabulamos uma agradável conversa, sobre assuntos
variados, o que dava a entender que, para ele, o internamento era uma mera
intercorrência de sua enfermidade, a ser superada, à custa dos cuidados
médicos, visto que perseguia o cumprimento de suas tarefas, tendo me indagado
sobre a publicação de um livro que ora organizava, e, para o qual contribuíra
com um texto. Notei que sobre o criado-mudo, junto ao seu leito, repousavam
três livros que trouxera para leitura: eram dois de gramática árabe e um de
gramática japonesa, todos escritos
Na manhã do sábado, dia 27/02/2010, voltei
ao hospital do ICC, para revê-lo e saber como passara a noite. Ele disse-me que
tivera uma noite tranquila, e lera boa parte do Smile, acusando ter feito isso com muito gosto. Os sinais de
emaciação em seu corpo, frutos da doença consumptiva, eram já evidentes; porém,
o seu espírito destemido e a sua vontade inquebrantável não pareciam fraquejar,
aguardando a alta, para esse mesmo dia, enquanto confessava e planejava suas
ações de trabalho para os meses vindouros.
Desse nosso encontro, que não esperava ser o
último, saí esperançoso, porém preocupado, e até lembrando a “fase da
barganha”, de Elizabeth Kübler-Ross, imaginei, cá com os meus botões, o
seguinte: Por que Deus não o deixa entre nós, até que ele aprenda o basco?
Isso, por certo, seria uma boa negociação, porque há uma lenda que Deus, para
castigar o diabo, determinou que o “anjo decaído” estudasse a língua basca
durante sete longos anos; alguns dizem que o “demo”, apesar do tempo
despendido, não teria conseguido aprendê-la.
Para o Carlos Maurício, dada à sua extrema
facilidade em aprender idiomas, talvez tivéssemos, com tal acordo vantajoso, a
garantia de tê-lo conosco, quiçá, por mais uns três anos, enquanto perdurasse o
aprendizado do “euskera”.
Com efeito, Mauricinho era um dos maiores
poliglotas do Ceará, sendo fluente em espanhol, francês, inglês, italiano,
alemão, holandês, russo e sueco; o latim e o grego clássico, religiosamente
estudados nos seus tempos de seminarista diocesano, lia e os escrevia razoavelmente;
e ainda compreendia bem o árabe e o japonês.
Munido desse arsenal linguístico, quem sabe
não terá ele chegado aos páramos celestiais, e diante de Pedro, ter repetido as
mesmas palavras atribuídas a Rui Barbosa, na II Conferência da Paz, ocorrida em
Haia em 1907: “Em que língua quereis que vos fale?”.
Como reconhecimento póstumo a tão
excepcional figura humana, a ACM, em Sessão Solene acontecida em 14 de maio de
2010, conferiu ao Prof. Dr. Carlos Maurício de Castro Costa o título de
Acadêmico Honorário in memoriam.
Acad. Marcelo Gurgel Carlos
da Silva
Titular da
cadeira 18 da ACM
*Publicado
In: Jornal do médico digital, 2(18): 67-69, outubro de 2021.
RD-Outubro-2021-app.pdf
(jornaldomedico.com.br)
Postado no Blog do Marcelo Gurgel em
31 de outubro de 2021.
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