domingo, 31 de outubro de 2021

CARLOS MAURÍCIO: CALARAM-SE AS LÍNGUAS

 

Em outubro do corrente ano, a Turma Carlos Chagas de médicos diplomados pela Universidade Federal do Ceará, em dezembro de 1971, celebra o seu cinquentenário de formatura. No bojo da programação comemorativa traçada por essa turma, da qual fazem parte quatro ilustres membros da Academia Cearense de Medicina (ACM), os doutores Adriana Costa, Lúcia Alcântara, Roberto Bruno Filho e Roberto Misici, foi incluída uma sessão de fortes lembranças, quando o Dr. Paulo Gurgel Carlos da Silva, em nome dos seus colegas, prestará homenagem póstuma a 17 companheiros de jornada que partiram, antecipadamente, ao reencontro do Pai, deixando oitenta iátricos sobreviventes submersos na imorredoura saudade.

Dentre os falecidos a prantear, está o Prof. Dr. Carlos Maurício de Castro Costa, o “Mauricinho”, que deixou esse mundo menor ainda menor, com a sua inopinada partida, em 15/03/2010, minado por uma doença traiçoeira, contra a qual lutou, obstinadamente, durante um ano, sem demonstrar abatimento ou revolta, mas tocando, com denodo, os seus muitos afazeres acadêmicos, tanto na assistência, no Serviço de Neurologia do Hospital Universitário Walter Cantídio, como na pesquisa, no Programa de Pós-Graduação em Farmacologia da UFC.

Dele, além das lembranças de um passado que remonta à minha meninice, como catecúmeno e membro da “Cruzadinha” da Igreja de Nossa Senhora das Dores, no bairro Otávio Bonfim, em Fortaleza, passando pelos trabalhos que em conjunto executamos na feitura de cursos, congressos e concursos, guardarei na memória os registros dos nossos dois últimos encontros, ocorridos em 26 e 27 de fevereiro de 2010, quando ele esteve hospitalizado no Instituto do Câncer do Ceará (ICC).

No dia 26/02/2010, sexta-feira, ao saber do seu internamento, fui visitá-lo, colocando-me à sua disposição, caso tivesse alguma necessidade, e entabulamos uma agradável conversa, sobre assuntos variados, o que dava a entender que, para ele, o internamento era uma mera intercorrência de sua enfermidade, a ser superada, à custa dos cuidados médicos, visto que perseguia o cumprimento de suas tarefas, tendo me indagado sobre a publicação de um livro que ora organizava, e, para o qual contribuíra com um texto. Notei que sobre o criado-mudo, junto ao seu leito, repousavam três livros que trouxera para leitura: eram dois de gramática árabe e um de gramática japonesa, todos escritos em francês. Aproveitei o momento, para brindá-lo com o livro “Smile: tributo à memória do Prof. Eilson Goes”, lançado em outubro do pretérito ano de 2009.

Na manhã do sábado, dia 27/02/2010, voltei ao hospital do ICC, para revê-lo e saber como passara a noite. Ele disse-me que tivera uma noite tranquila, e lera boa parte do Smile, acusando ter feito isso com muito gosto. Os sinais de emaciação em seu corpo, frutos da doença consumptiva, eram já evidentes; porém, o seu espírito destemido e a sua vontade inquebrantável não pareciam fraquejar, aguardando a alta, para esse mesmo dia, enquanto confessava e planejava suas ações de trabalho para os meses vindouros.

Desse nosso encontro, que não esperava ser o último, saí esperançoso, porém preocupado, e até lembrando a “fase da barganha”, de Elizabeth Kübler-Ross, imaginei, cá com os meus botões, o seguinte: Por que Deus não o deixa entre nós, até que ele aprenda o basco? Isso, por certo, seria uma boa negociação, porque há uma lenda que Deus, para castigar o diabo, determinou que o “anjo decaído” estudasse a língua basca durante sete longos anos; alguns dizem que o “demo”, apesar do tempo despendido, não teria conseguido aprendê-la.

Para o Carlos Maurício, dada à sua extrema facilidade em aprender idiomas, talvez tivéssemos, com tal acordo vantajoso, a garantia de tê-lo conosco, quiçá, por mais uns três anos, enquanto perdurasse o aprendizado do “euskera”.

Com efeito, Mauricinho era um dos maiores poliglotas do Ceará, sendo fluente em espanhol, francês, inglês, italiano, alemão, holandês, russo e sueco; o latim e o grego clássico, religiosamente estudados nos seus tempos de seminarista diocesano, lia e os escrevia razoavelmente; e ainda compreendia bem o árabe e o japonês.

Munido desse arsenal linguístico, quem sabe não terá ele chegado aos páramos celestiais, e diante de Pedro, ter repetido as mesmas palavras atribuídas a Rui Barbosa, na II Conferência da Paz, ocorrida em Haia em 1907: “Em que língua quereis que vos fale?”.

Como reconhecimento póstumo a tão excepcional figura humana, a ACM, em Sessão Solene acontecida em 14 de maio de 2010, conferiu ao Prof. Dr. Carlos Maurício de Castro Costa o título de Acadêmico Honorário in memoriam.

Acad. Marcelo Gurgel Carlos da Silva

Titular da cadeira 18 da ACM

*Publicado In: Jornal do médico digital, 2(18): 67-69, outubro de 2021.

RD-Outubro-2021-app.pdf (jornaldomedico.com.br)

Postado no Blog do Marcelo Gurgel em 31 de outubro de 2021.


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