terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

ORA, PLÍNDOLA

Por Romeu Duarte (*)

À memória de Pedro Henrique Saraiva Leão

Pois é, poeta, partiste, mas teus poemas ficaram. Densos, metafóricos, crus, polissêmicos, concretos, vazados em línguas diversas e numa alegria triste. A meu juízo, sempre foste por estas bandas aquele que melhor compreendeu a lição magistral de Pound contida no seu ABC da Literatura e estruturada em três palavras estranhas: fanopéia, logopéia e melopéia. Abro o belo livro que me deste e esta tríade está presente na dedicatória: "Avec my echo, my shadow and me". Dentro da brochura acho um bilhete amarrotado, lembrança de uma vez em que quase voaste para o outro lado, no qual se lê na garatuja: "Quem tem cu, tem medo". Poesia e medicina, difíceis ofícios que soubeste, como poucos, manejar, remédios para a alma e o corpo, na ponta dos dedos...

Na nossa mesa de bar vária e alongada cabia todo tipo de conversa. Gostavas dos chistes espirituosos, dos complexos jogos de palavras, de citar os poetas da tua vasta erudição. Tomaste, meu caro, um caminho contrário aos dos teus colegas contemporâneos, encharcados de latinidades, preferindo a poesia nas dicções inglesa e francesa, mais aquela do que esta, concretismo e beat poetry à frente. Lembro-me da deliciosa história que contaste sobre uma noite boêmia que curtiste na companhia de Lawrence Ferlinghetti, expoente da Beat Generation, e do anjo azul Marlene Dietrich, em San Francisco. Coesia tua: "o meu sonho é um)agulha descosturando o passado e bordando o esboço do porvir, quando na multidão de nós dois nos encontraremos entre as sombras"...

Pediste-me, certa vez, uma leitura analítica de "Plíndola", teu último trabalho. Como Quintana, penso que "a poesia não se entrega a quem a define". Apraz-me senti-la ("Sinta quem lê", diria Pessoa), degustando suas imagens, sons e jogos mentais. Este motivo e os afazeres da vida, que determinam nosso rumo, transformando-nos em taxistas de nós mesmos, me impediram de cumprir a tua solicitação. Dizem que a exclamação "Plíndola!" foi retirada de uma montagem teatral do Macunaíma de Mário de Andrade e até hoje ninguém sabe o que o vocábulo significa. Será que uma palavra, para existir, precisa de um sentido? Para mim, é sinônimo de uma fina coleção de poemas teus, bem assim: "Tenho um lírio na consciência e uma rosa no passado: ainda queres?".

"O tempo é sempre outro que não este; aranhas tecem teias no meu canto; troçam, as traças, do meu tempo; mas, embora sempre outro que não este; este foi o tempo que me deste". Como disse, e bem, no prefácio desta tua seleta poética o professor Pedro Paulo Montenegro (que deve estar contigo agora compondo anagramas), todo lirismo é confessional. Neste "Plíndola", abriste-nos teu museu particular, comungando a tua e as nossas vidas, vez que "o poema é uma obra sempre inacabada, sempre disposta a ser completada e vivida por um novo leitor", não é, Octavio Paz? Fecho com este: "Q o poema seja destro ou canhoto; mas com gesto certo; com luz de relâmpago mas gume de bisturi; poema contra a corrente feito piracema". Plíndola! Até um dia, poeta.

(*) Arquiteto. Professor da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Fonte: Publicado In: O Povo, de 21/02/22. Vida & Arte, p.2.

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