Por Izabel Gurgel (*)
Março de 2007. A praça fervilhava naquele sábado à tarde. À
degradação do espaço físico, impunha-se uma vitalidade atordoante. À desordem
da ocupação pela feira, cujas centenas de barracas com estrutura de ferro
haviam destruído o piso, ainda era possível se contrapor à ordenação da agenda
comum de artistas de rua. Nos anos anteriores, artistas recriavam ali um tempo
em que as artes da cena não tinham espaço fixo para acontecer.
Estávamos ali para vê-los em sua maestria de sedução, conquista de
público, sustentação de uma roda-plateia. O palhaço Colorau, o ventríloquo
Rodrigo do Boneco, Quebra Côco, repentistas e cantadores se alternavam em
apresentações cujos horários e espaços eram por eles definidos conjuntamente.
Só isso tornava possível o uso comum do espaço, progressiva e aceleradamente
sendo desfeito.
O espaço passível de partilha há muito estava ameaçado. Uma
degradação que comprometia os calçadões e as calçadas da região central, além
das praças, paradas e terminais de ônibus. A potência de som dos pregadores de
um deus que nos parece surdo ainda subiria mais e mais. As fontes distintas de
música amplificada para uma escuta anestesiada, proveniente dos bares e
restaurantes instalados na praça, não se elevavam aos céus, que há muito já não
nos protegia. Com um espaço aéreo tão poluído, nem era preciso olhar o volume
de lixo no chão.
Era uma travessia de alto risco chegar ao Zé de Alencar, o teatro,
aberto para visitação e com rotinas próprias de trabalho em torno de uma
programação artística a oscilar entre frágil, impotente e potente para
contracenar com o seu entorno, para convocar a cidade.
Tratada por profissionais sobretudo a partir da atuação de órgãos
designados para tal, de há muito sabemos que a chamada questão do patrimônio
não tem sustentação sem a participação da comunidade à qual esteja diretamente
ligada.
Vamos pensar aqui a Praça José de Alencar em caráter afirmativo,
puxando pela abundância de vida lá ancorada na praça dos anos 1990, por
exemplo. Perguntar como cuidar da "base física" tendo em vista o
patrimônio imaterial do lugar. Refiro-me a artistas que ali se apresentavam
como portadores de saberes e práticas ancestrais.
Lembro da lona de circo armada na praça, como ação do TJA. O Circo
do Palhaço Trepinha, no mês de aniversário do teatro, em junho. No segundo dia
de circo, trabalhadoras e trabalhadores da praça, moradores das áreas mais próximas
e passantes já traziam as crianças. Flores na erosão da paisagem.
Praça e Theatro José de Alencar são experiências de vida pública em
Fortaleza. Pensar, intervir, agir em um sem pensar no outro é política de necas
de pitibiriba. Foi uma conquista contar com a Praça como praça e não terminal
de ônibus, que comprometia, sabemos, o dia-a-dia da instituição.
Você sabia que até o maior palco do TJA - o teatro tem vários
espaços cênicos e não só o palco de 1910 - sofre com trepidação por efeito do
forte fluxo de veículos ao redor? Sabia que foi um alívio para as gentes e o
lugar a redução de fuligem sobre todas as superfícies quando da diminuição de
ônibus no entorno? Sabia que a alta voltagem da poluição sonora comprometia o
andamento de atividades do TJA?
Pois o futuro nos aguarda no pior dos passados do entorno. A área
que foi do Beco da Poeira ganha nova edição: o elogio da fuligem. Vai ser
terminal de ônibus, anos depois de minimamente se iniciar a elaboração de um
entorno melhor para as vidas do Zé de Alencar. Acredita? Parece mentira, não é?
Primeiro de abril foi ontem. O que podemos fazer?
(*) Jornalista de O Povo.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 2/04/23. Vida & Arte, p.2.
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