quarta-feira, 3 de maio de 2023

CAMINHOS DO CEARÁ: chão e céu na Praça e no TJA

Por Izabel Gurgel (*)

Março de 2007. A praça fervilhava naquele sábado à tarde. À degradação do espaço físico, impunha-se uma vitalidade atordoante. À desordem da ocupação pela feira, cujas centenas de barracas com estrutura de ferro haviam destruído o piso, ainda era possível se contrapor à ordenação da agenda comum de artistas de rua. Nos anos anteriores, artistas recriavam ali um tempo em que as artes da cena não tinham espaço fixo para acontecer.

Estávamos ali para vê-los em sua maestria de sedução, conquista de público, sustentação de uma roda-plateia. O palhaço Colorau, o ventríloquo Rodrigo do Boneco, Quebra Côco, repentistas e cantadores se alternavam em apresentações cujos horários e espaços eram por eles definidos conjuntamente. Só isso tornava possível o uso comum do espaço, progressiva e aceleradamente sendo desfeito.

O espaço passível de partilha há muito estava ameaçado. Uma degradação que comprometia os calçadões e as calçadas da região central, além das praças, paradas e terminais de ônibus. A potência de som dos pregadores de um deus que nos parece surdo ainda subiria mais e mais. As fontes distintas de música amplificada para uma escuta anestesiada, proveniente dos bares e restaurantes instalados na praça, não se elevavam aos céus, que há muito já não nos protegia. Com um espaço aéreo tão poluído, nem era preciso olhar o volume de lixo no chão.

Era uma travessia de alto risco chegar ao Zé de Alencar, o teatro, aberto para visitação e com rotinas próprias de trabalho em torno de uma programação artística a oscilar entre frágil, impotente e potente para contracenar com o seu entorno, para convocar a cidade.

Tratada por profissionais sobretudo a partir da atuação de órgãos designados para tal, de há muito sabemos que a chamada questão do patrimônio não tem sustentação sem a participação da comunidade à qual esteja diretamente ligada.

Vamos pensar aqui a Praça José de Alencar em caráter afirmativo, puxando pela abundância de vida lá ancorada na praça dos anos 1990, por exemplo. Perguntar como cuidar da "base física" tendo em vista o patrimônio imaterial do lugar. Refiro-me a artistas que ali se apresentavam como portadores de saberes e práticas ancestrais.

Lembro da lona de circo armada na praça, como ação do TJA. O Circo do Palhaço Trepinha, no mês de aniversário do teatro, em junho. No segundo dia de circo, trabalhadoras e trabalhadores da praça, moradores das áreas mais próximas e passantes já traziam as crianças. Flores na erosão da paisagem.

Praça e Theatro José de Alencar são experiências de vida pública em Fortaleza. Pensar, intervir, agir em um sem pensar no outro é política de necas de pitibiriba. Foi uma conquista contar com a Praça como praça e não terminal de ônibus, que comprometia, sabemos, o dia-a-dia da instituição.

Você sabia que até o maior palco do TJA - o teatro tem vários espaços cênicos e não só o palco de 1910 - sofre com trepidação por efeito do forte fluxo de veículos ao redor? Sabia que foi um alívio para as gentes e o lugar a redução de fuligem sobre todas as superfícies quando da diminuição de ônibus no entorno? Sabia que a alta voltagem da poluição sonora comprometia o andamento de atividades do TJA?

Pois o futuro nos aguarda no pior dos passados do entorno. A área que foi do Beco da Poeira ganha nova edição: o elogio da fuligem. Vai ser terminal de ônibus, anos depois de minimamente se iniciar a elaboração de um entorno melhor para as vidas do Zé de Alencar. Acredita? Parece mentira, não é? Primeiro de abril foi ontem. O que podemos fazer?

(*) Jornalista de O Povo.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 2/04/23. Vida & Arte, p.2.

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