Por Izabel Gurgel (*)
Tenho em casa uma caneca com uma linha de Carlos Drummond de
Andrade no rodapé. O poeta, um desenho em preto, anda sobre seus próprios
versos em vermelho: No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio
do caminho/ tinha uma pedra/ no meio do caminho tinha uma pedra... Ao final do
poema, a logo IMS - Instituto Moreira Salles, o traço simples, preto, fazendo
uma casa sobre o fundo branco. Da casa, da caneca, do café, do mais cotidiano,
vamos para a rua, a estrada. Como um lápis a escrever salta para a linha
seguinte.
Somos a Rádio Estrada. A viagem é caminho e destino. De Fortaleza,
uns 175 km em direção à barra do Rio Mundaú, fizemos mais de uma vez em até
nove horas de carro. As garças desfilam sobre as águas também às segundas. Para
uma lagoa, parece que é melhor quando a gente não está por perto.
A Rádio Estrada tem muitas vozes. Se juntos em ramalhete, seus
pontos de emissão seriam tipo vazão de açude, a do Orós, uma vez que estamos a
caminho de Icó, entrando no sul do Ceará como as boiadas um dia passaram, passo
a passo. Cada viajante, uma conversa com a estrada. Três em um automóvel,
congresso com o cinema ao redor. Não é sobre, é de dentro do filme.
Caju-ameixa da agricultura familiar do Sítio Boa Água, Cascavel.
Prateleiras de churrascaria em Chorozinho. Você também lê rótulos? Cafezinho
leva açúcar, como o doce. É cortesia da casa.
A proximidade de Quixadá, de onde quer que se venha e veja, é
longa-metragem em tempo onírico. Tão concreta não quer dizer real. Um espanto
sempre aquele céu sobre nossas cabeças. Vai na bolsa de mão um livro de bolso com
três contos. Mário de Andrade, Guimarães Rosa e Garcia Márquez. Encontro que só
um livro, ou a leitura, torna possível. Abro em "São Marcos", depois
de querer contá-lo, como se falasse de um sequilho antes de oferecê-lo. Leio,
então, as últimas linhas, Guimarães Rosa dizendo algo como "sobre as
prateleiras do monte cintilam três qualidades de azul". São Marcos começa
no tempo em que o narrador não acreditava em feitiço.
Havíamos passado da entrada de Guassussê. Siga as placas, não siga
a lógica me ocorre sempre quando anoitecemos na estrada. Já era Lima Campos?
Ouvimos, via rádio de Icó, a procissão do Senhor do Bonfim. O carro-andor se
aproximando da igreja. Eu havia contado mil e uma vezes e outra mais sobre as
bombas do primeiro dia do ano em Icó, milhares, feitas a mão, dias e dias, para
queimarem em efeito dominó, quando o Santo chega de volta ao patamar do
santuário. Aquilo ali não é nuvem, Izabel, será a fumaça das bombas? Abro a
janela para ouvir o que icoenses mais velhos chamam de bombardeio. O vento zum
zum vruum sobre nosso susto. A rádio sai do ar. Não fosse a viagem como
destino, jamais veríamos dali as bombas, um conhecimento centenário trazido até
nós pelo mestre Bonfim e mulheres e homens de sua família. Entrar na cidade
depois do maior dia dela fica para sempre. Pegamos as últimas porções de paçoca
do Deca.
O queijo de Aurora fica para a próxima. Só uma linha aqui para
anunciar Dona Maria Leonor e Seu Germano Gonçalves fazendo no Sítio Cabôco, há
mais de 45 anos, o queijo-garça que transforma qualquer dia em domingo. Provei
depois de uma procissão em Juazeiro do Norte, quando nas despedidas, romeiros
fazem refulgir a cidade, como na chegada. Imagine a Rádio Estrada da Nação
Romeira.
(*) Jornalista de O Povo.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 21/01/24. Vida & Arte, p.2.
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