terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

CAMINHOS DO CEARÁ: Aurora tem um queijo-manteiga...

Por Izabel Gurgel (*)

Tenho em casa uma caneca com uma linha de Carlos Drummond de Andrade no rodapé. O poeta, um desenho em preto, anda sobre seus próprios versos em vermelho: No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ tinha uma pedra/ no meio do caminho tinha uma pedra... Ao final do poema, a logo IMS - Instituto Moreira Salles, o traço simples, preto, fazendo uma casa sobre o fundo branco. Da casa, da caneca, do café, do mais cotidiano, vamos para a rua, a estrada. Como um lápis a escrever salta para a linha seguinte.

Somos a Rádio Estrada. A viagem é caminho e destino. De Fortaleza, uns 175 km em direção à barra do Rio Mundaú, fizemos mais de uma vez em até nove horas de carro. As garças desfilam sobre as águas também às segundas. Para uma lagoa, parece que é melhor quando a gente não está por perto.

A Rádio Estrada tem muitas vozes. Se juntos em ramalhete, seus pontos de emissão seriam tipo vazão de açude, a do Orós, uma vez que estamos a caminho de Icó, entrando no sul do Ceará como as boiadas um dia passaram, passo a passo. Cada viajante, uma conversa com a estrada. Três em um automóvel, congresso com o cinema ao redor. Não é sobre, é de dentro do filme.

Caju-ameixa da agricultura familiar do Sítio Boa Água, Cascavel. Prateleiras de churrascaria em Chorozinho. Você também lê rótulos? Cafezinho leva açúcar, como o doce. É cortesia da casa.

A proximidade de Quixadá, de onde quer que se venha e veja, é longa-metragem em tempo onírico. Tão concreta não quer dizer real. Um espanto sempre aquele céu sobre nossas cabeças. Vai na bolsa de mão um livro de bolso com três contos. Mário de Andrade, Guimarães Rosa e Garcia Márquez. Encontro que só um livro, ou a leitura, torna possível. Abro em "São Marcos", depois de querer contá-lo, como se falasse de um sequilho antes de oferecê-lo. Leio, então, as últimas linhas, Guimarães Rosa dizendo algo como "sobre as prateleiras do monte cintilam três qualidades de azul". São Marcos começa no tempo em que o narrador não acreditava em feitiço.

Havíamos passado da entrada de Guassussê. Siga as placas, não siga a lógica me ocorre sempre quando anoitecemos na estrada. Já era Lima Campos? Ouvimos, via rádio de Icó, a procissão do Senhor do Bonfim. O carro-andor se aproximando da igreja. Eu havia contado mil e uma vezes e outra mais sobre as bombas do primeiro dia do ano em Icó, milhares, feitas a mão, dias e dias, para queimarem em efeito dominó, quando o Santo chega de volta ao patamar do santuário. Aquilo ali não é nuvem, Izabel, será a fumaça das bombas? Abro a janela para ouvir o que icoenses mais velhos chamam de bombardeio. O vento zum zum vruum sobre nosso susto. A rádio sai do ar. Não fosse a viagem como destino, jamais veríamos dali as bombas, um conhecimento centenário trazido até nós pelo mestre Bonfim e mulheres e homens de sua família. Entrar na cidade depois do maior dia dela fica para sempre. Pegamos as últimas porções de paçoca do Deca.

O queijo de Aurora fica para a próxima. Só uma linha aqui para anunciar Dona Maria Leonor e Seu Germano Gonçalves fazendo no Sítio Cabôco, há mais de 45 anos, o queijo-garça que transforma qualquer dia em domingo. Provei depois de uma procissão em Juazeiro do Norte, quando nas despedidas, romeiros fazem refulgir a cidade, como na chegada. Imagine a Rádio Estrada da Nação Romeira.

(*) Jornalista de O Povo.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 21/01/24. Vida & Arte, p.2.

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