domingo, 16 de junho de 2024

CAMINHOS DO CEARÁ: os sonhos da Flora e dos pássaros

Por Izabel Gurgel (*)

Flora completa hoje cinco meses na Terra. Um elogio à vida, Flora ri um bocado quando acordada e ri também dormindo. Roberta e Alan, mãe e pai da Flora, riem ao ouvir Flora rindo em meio ao sono. Flora, então, ri mais e melhor, chega a gargalhar em seguida à manifestação dos pais. Como um biomarcador de outra presença, indício de contato e contágio, o riso nos expande. Rimos com.

Além do gosto de travessura, é uma travessia rir, na vigília, com Flora que ri no mundo do sono. Ah, a escuta.

As fronteiras entre vigília e sono e sonho são, como todas as fronteiras, zonas de transição. O sono, sabemos, não é o único território dos sonhos. Nem são os sonhos específicos da fauna humana. Também dormidores, outros bichos e outros seres sonham.

Um físico especialista em neurociências, Gabriel Mindlin um dia se perguntou sobre o que (se) passava na cabeça de uma ave dormindo. Em um episódio de podcast, ele acorda nossos sentidos falando sobre (com) o que sonham os pássaros.

Ele conta da graça de atravessar a fronteira entre a vigília e o sono e voltar com algo muito concreto: um canto.

Mindlin conta os experimentos feitos. A observação aplicada. Ele vai encontrar indícios da atividade de cantar no cérebro e na musculatura dos pássaros, durante o sono, bastante similares ao cantar quando estão acordados.

Pássaros observados pelo cientista sonham cantando, ainda que não emitam o som, que o canto não se externalize, como o riso do bebê Flora.

Vestígios da intenção do canto estão registrados na memória do corpo e é possível, fora do sonho dos pássaros, 'escutá-los' pelo rastro e vibração da comunicação, digamos assim, entre o cérebro e o aparelho vocal. Os pássaros estão aprendendo a cantar. Nem todas as espécies nascem sabendo. Cerca da metade precisa aprender e, como nós humanos, aprendem uns com os outros.

O sono - sonho como escola. É mais do que um episódio de podcast sobre o papel do sonho na aprendizagem. Ou sobre o que sonham os pássaros. Ouve-se um homem encantado pelo caminho aberto por perguntas talvez improváveis de serem postas no chamado mundo adulto.

Salvo engano, é no livro "Memorial do Convento" que Saramago escreve algo como o mundo vive dando respostas. O que demora é o tempo das perguntas. Pensei em atravessar o domingo assim. A querer ouvir, ver nascer perguntas que digam sim à vida, feito Flora a nos fazer rir com seu riso alto no meio do sono. As notícias geradas pela experiência de humanidade que nos tornamos têm tirado o sono, e o riso, de muitas criaturas. A Terra precisa sonhar.

(*) Jornalista de O Povo.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 12/05/24. Vida & Arte, p.2.


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