Por Izabel Gurgel (*)
Flora completa hoje
cinco meses na Terra. Um elogio à vida, Flora ri um bocado quando acordada e ri
também dormindo. Roberta e Alan, mãe e pai da Flora, riem ao ouvir Flora rindo
em meio ao sono. Flora, então, ri mais e melhor, chega a gargalhar em seguida à
manifestação dos pais. Como um biomarcador de outra presença, indício de
contato e contágio, o riso nos expande. Rimos com.
Além do gosto de
travessura, é uma travessia rir, na vigília, com Flora que ri no mundo do sono.
Ah, a escuta.
As fronteiras entre
vigília e sono e sonho são, como todas as fronteiras, zonas de transição. O
sono, sabemos, não é o único território dos sonhos. Nem são os sonhos
específicos da fauna humana. Também dormidores, outros bichos e outros seres
sonham.
Um físico especialista
em neurociências, Gabriel Mindlin um dia se perguntou sobre o que (se) passava
na cabeça de uma ave dormindo. Em um episódio de podcast, ele acorda nossos
sentidos falando sobre (com) o que sonham os pássaros.
Ele conta da graça de
atravessar a fronteira entre a vigília e o sono e voltar com algo muito
concreto: um canto.
Mindlin conta os
experimentos feitos. A observação aplicada. Ele vai encontrar indícios da
atividade de cantar no cérebro e na musculatura dos pássaros, durante o sono,
bastante similares ao cantar quando estão acordados.
Pássaros observados pelo
cientista sonham cantando, ainda que não emitam o som, que o canto não se
externalize, como o riso do bebê Flora.
Vestígios da intenção do
canto estão registrados na memória do corpo e é possível, fora do sonho dos
pássaros, 'escutá-los' pelo rastro e vibração da comunicação, digamos assim,
entre o cérebro e o aparelho vocal. Os pássaros estão aprendendo a cantar. Nem
todas as espécies nascem sabendo. Cerca da metade precisa aprender e, como nós
humanos, aprendem uns com os outros.
O sono - sonho como
escola. É mais do que um episódio de podcast sobre o papel do sonho na
aprendizagem. Ou sobre o que sonham os pássaros. Ouve-se um homem encantado
pelo caminho aberto por perguntas talvez improváveis de serem postas no chamado
mundo adulto.
Salvo engano, é no livro
"Memorial do Convento" que Saramago escreve algo como o mundo vive
dando respostas. O que demora é o tempo das perguntas. Pensei em atravessar o
domingo assim. A querer ouvir, ver nascer perguntas que digam sim à vida, feito
Flora a nos fazer rir com seu riso alto no meio do sono. As notícias geradas
pela experiência de humanidade que nos tornamos têm tirado o sono, e o riso, de
muitas criaturas. A Terra precisa sonhar.
(*) Jornalista de O Povo.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 12/05/24. Vida & Arte, p.2.
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