quarta-feira, 7 de agosto de 2024

ALMA DE BOTEQUIM

Por Romeu Duarte Junior (*)

Botequim é como gente, cada qual tem seu jeito. Ao me aproximar da marca de 40 anos de batente etílico diário, tenho refletido sobre a importância de tais estabelecimentos para a saúde física e mental do gênero humano. Sim, porque esse negócio de casa-trabalho-casa já fez com que muitos sujeitos e sujeitas fossem parar no hospício. Às vezes, é fundamental tirar férias de nós mesmos, nem que seja por algumas horas: o relógio marcando o tempo das delícias, o cotovelo criando calo no balcão (grato, Jaguar), a conversa mole na mesa de bar, a paciência quase sempre curta dos taberneiros. É que nem uma igreja: o rito se desenrola numa liturgia de copos, garrafas, pratos e talheres, enquanto se louva o sacrifício de quem nos deu de beber e comer. Ah, uma para o santo.

Como todo profissional do ramo, tenho meus bares prediletos. Alguns restam apenas na memória, outros se transformaram (geralmente para pior) e uns poucos resistem impávidos. Gosto dos botequins simples, sem afetação ou higiene de hospital. Detesto aqueles metidos, estilo Bauhaus ou minimalista. Frequentei o Bar do Aírton, um dos mais precários que já vi na vida e que existe apenas imaterialmente, durante mais de 30 anos. Lá fiz graduação, mestrado e doutorado na arte de tomar umas e outras. Hoje, o meu pouso mais longo é no Raimundo do Queijo, já lá se vão 17 janeiros fazendo parte da mesa da diretoria aos domingos, faça chuva ou faça sol. A velha Travessa Crato se vê tomada por mesas e cadeiras cheias de pessoas que dão sentido ao Centro.

Há dois que aprecio por suas singelezas e a bonomia dos seus donos. O Bar do Seu Nonato, encravado na Gentilândia há 64 anos, é um dos mais antigos de Fortaleza e além de confessionário, consultório de psiquiatra e púlpito, o que todo boteco que se preza é, serviu também como esconderijo e refúgio dos perseguidos pela ditadura militar. De área exígua, expande seus domínios para a Rua Padre Francisco Pinto, o jesuíta martirizado pelos tapuias. Já o Bar do Vicente, em pleno Joaquim Távora, é espaçoso como alguns dos seus muitos frequentadores, dispondo de uma ampla varanda voltada para o sul. É nesses ambientes onde tomo o aperitivo antes do almoço, munido de frutas para o tira-gosto. Um com as suas imagens santas, o outro com o fiteiro, a TV e a balança.

No Bar do Helano, no qual o dono imita Waldick Soriano, Roberto Carlos e Cauby Peixoto, é onde pode ser encontrada a melhor garçonete da cidade, a Aninha, que resolve qualquer problema só com o olhar. Espécie de consulado de Limoeiro do Norte, é lá onde os conterrâneos botam o papo em dia. Por fim, é na Embaixada da Cachaça onde, todas as noites, ancoro o meu boêmio barco. Altino e Gorette, os proprietários, recebem uma clientela assídua e interessada no imenso acervo de aguardente de cana da casa. Dá para beber uma dose de cada pinga por dia, o ano inteiro, sem repetir a marca. Os irmãos Denis e Diego são garçons telepatas, já vêm trazendo o que você quer. E assim, caros, vou vivendo, entre estrondos e gemidos, homem oco cheio de si.

(*) Arquiteto e professor da UFC. Sócio do Instituto do Ceará. Colunista de O Povo.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 15/07/24. Vida & Arte. p.2.

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