Por Ana Miranda, escritora
Algo que me admirou, quando voltei a morar no Ceará, foi o amor de
homens por suas esposas. Notei logo, desde quando assisti a uma festa em que
senhores discursavam. Era uma festa de trabalho. Mas cada um deles aproveitou o
momento para fazer uma declaração de amor. Verdadeiras cartas de amor ditas em
voz alta. Isso pode ter vários significados, mas como meu pai foi a vida toda
apaixonado por minha mãe, e assim aprendi a acreditar no amor matrimonial,
interpretei como gestos de puro sentimento.
Guardo uma coleção de cartas de amor escritas por meus pais, nos anos
1930, 1940. Estavam noivos e se separaram por um período, quando ela foi
estudar na Escola Doméstica de Natal, preparando-se para o casamento; ou,
depois de casados, durante alguma viagem de trabalho do “doutor”. As cartas de
amor são sempre saudosas, doloridas, porque são escritas quando o ser amado
está distante. Tratavam-se por “minha filhinha”, “meu filhinho”, usavam
diminutivos carinhosos: “Aceite mil beijos e saudades do maridinho só seu”. E ela, com uma
letra harmoniosa e delicada: “Bem, meu futuro maridinho, aceita muitas saudades e
beijos da tua noivinha que muito te quer”. Ele estava sempre preocupado com a
saúde dela, e ela, com o excesso de trabalho a que ele se dava. Pode-se
perceber que ele ainda era senhor de si, quando noivos, mas depois do casamento
demonstra o quanto está arrebatado pela paixão. Por essas cartas, redescubro
meu pai como um novo homem.
Lembrei-me dessas cartas e da festa noturna de declarações de amor
quando estive a folhear um livro com as cartas trocadas, desde 1882, pelo
estudante de direito, Clóvis Bevilaqua, com sua “boa e querida” musa, a
escritora Amélia de Freitas, após se conhecerem numa praia do Recife – ela
quase se afogava e ele a salvou. Ainda uma vez, a emoção destrona a razão, e o
rapaz escreve “como quem conversa, sem método, sem concatenação, sem mesmo pensar no
que disse nem no que vou dizer”, achando-se um tolo. Nas cartas, um pouco de
filosofia, de usos e costumes, de paisagens, sobretudo a história de um eterno
amor, que ficou registrado nesta jura: “Juro por quanto há nobre e grande ...
que te adoro, que te idolatro, que és o meu mundo e a minha glória, minha
ambição e o alvo de meus anelos, juro que jamais se apagará em meu seio este
ardor que me é alento e vida...”. Essa jura me faz lembrar as declarações de amor,
naquela noite de discursos, assim que cheguei ao Ceará.
Há toda uma literatura de missivas de amor, como as cartas de Graciliano
Ramos para a noiva, Heloísa Medeiros. Ela era uma moça de 18 anos, e
Graciliano, um viúvo de 35, pai de quatro filhos, empregado na Prefeitura de
Palmeira dos Índios. As sete cartas, publicadas em livro, impressionam pelo
derramamento de Graciliano; ele, sempre tão contido, reclama da frieza de sua
pretendida que lhe mandava cartas de duas linhas; provam que não há matemática
na psicologia de um ser apaixonado. “Adeus, minha noivinha amada”. “Adeus,
minha santa”. Mas ele continua a ser o homem de poucas palavras, mordaz,
negativista: “Eu te procurei porque endoideci por tua causa quando te vi pela primeira
vez. É necessário que isto acabe logo. Tenho raiva de ti, meu amor.” Ele diz que não
sabe mentir, e “os outros me veem por dentro melhor do que por fora”. Com uma série de
confissões amargas, as cartas não esclarecem o “mistério” Graciliano, mas
ficamos conhecendo melhor seu temperamento. São conhecidas cartas de amor de
Machado de Assis a Carolina, de Dostoievski a Anna Grigoriévna, de Victor Hugo
a Juliette Drouet, de Plínio a Calpúrnia; de Mark Twain, de Flaubert, Mozart,
Darwin, Beethoven, lord Byron, Robert Browning, a suas amadas, ou de mulheres a
seus amados, como Florbela Espanca e Mariana de Alcoforado.
Mas não é preciso ser um escritor para arrancar suspiros do ser amado. A
carta de amor pertence a todos os que amam. Ao contrário do que disse Fernando
Pessoa, que todas as cartas de amor são ridículas, e se não fossem ridículas
não seriam cartas de amor... Ele mesmo escreveu a sua amada Ofélia: “Meu Bebezinho,
minha almofadinha cor-de-rosa para pregar beijos (que grande disparate!)” Nenhuma
carta de amor provoca riso ou escárnio, a não ser naqueles que têm medo de
amar. Portanto, escrevamos cartas de amor, ainda que fiquem guardadas nas
gavetas, sem endereço. Escrevamos para a pessoa amada, para nós mesmos.
Guardemos nossas cartas de amor em maços perfumados, em caixinhas macias, elas
serão a lembrança mais doce de um tempo que nunca passou.
(O livro em questão é De Clóvis para Amélia, org. José Luís Lira, Ed.
UVA/ASEL).
Fonte: Ana Miranda 12/07/2015 Vida & Arte p.35
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