quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

VIDA E MORTE SEVERINA



Paulo Elpídio de Menezes Neto  (*)
Severino, da Maria do Zacarias, faz esse lamento, posto diante dos desafios de abrandar pedras que o destino lhe oferece. Severinos são “iguais em tudo na vida“: “é que a morte severina /ataca em qualquer idade/e até gente não nascida”. A poesia e o romanceiro nordestino são o registro mais veemente na amargura e no fatalismo dos personagens de uma trama secular. História trágica a que se mostraram alheios e indiferentes a proteção divina, sempre invocada pelos Severinos em sua crédula esperança, e os homens de poder em sua dissimulada retórica de promessas consentidas. João Cabral moldou, em um poema ácido, duro na extração do pouco de vida restante no corpo da morte marcada dos homens, a imagem de uma imensa tragédia.
Pedro II prometeu empenhar a última pérola de sua coroa para combater as secas do nordeste. Max Fleuiss, historiador e cronista, descobriu, entretanto, em suas bisbilhotices pelos arquivos do II Reinado, que as despesas do famoso baile da Ilha Fiscal correram pela verba classificada como “Obras das Secas do Ceará”. Mais de 20 secas foram registradas desde 1606 até a deste ano. Pedro II criou uma Comissão dita das Secas, denominação, logo emendada para Comissão dos Açudes. Passou a Instituto de Obras Contra as Secas, em 1909; em 1915 voltou a tratar de açudes. Criou-se, em 1915, um Campo de Concentração do Ceará, onde se mantinham, caridosamente, os flagelados.
De Iocs o órgão passou a chamar-se Ifocs, depois Dnocs. Vieram a Codeno, a Sudene e o BNB. A Sudene, extinta, virou a Adeno. Uma alegre sucessão de siglas manipuladas por políticos, proprietários rurais e governadores.
Os cronistas das secas falam da construção de açudes em terras e domínios de particulares. Criaram-se municípios nos limites familiares de terras, muitas delas improdutivas. Estradas vicinais foram abertas entre fazendas de uma mesma grei de fazendeiros assinalados. Políticos e proprietários tomaram empréstimos em bancos oficiais, em condições nada severinas. Frentes de trabalho, recursos federais, incentivos e renúncias fiscais drenaram, anos a fio, recursos da fazenda pública para a fazenda privada. Os projetos para aproveitamento das águas estancadas nos reservatórios particulares e nos públicos para irrigação das terras de plantio e de criação foram vistos com desconfiança pelos fazendeiros e criadores. Tantos Severinos com colheita firme e garantida poderiam despertar cobranças abusadas e insatisfações ameaçadoras.
Quatrocentos anos depois, repete-se a caminhada secular dos Severinos. Na terra calcinada, nos descaminhos das obras públicas, surge a obra faraônica, anunciada aos ventos e aos eleitores incautos, com os seus canais degradados, pelos quais haverá de correr, um dia, a água do Velho Chico para molhar as terras encarquilhadas dos muitos Severinos desesperançados.
Em entrevista realizada no interior do Ceará com um velho e rude vaqueiro, perguntamos-lhe o que a Sudene significava para ele. Respondeu-nos, com a ingenuidade amarga dos simples: “Doutor, a Sudene é uma caminhonete Rural, com dois ‘filhos-de-uma-égua’ na boleia, andando pra cima e pra baixo”.
(*) Cientista político e membro da Academia Brasileira de Educação
Fonte: O Povo, 6/02/13. Opinião, p.6.

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