Até onde eu sei François Lyotard,
no seu livro A Condição Pós-moderna,
foi o primeiro a usar o conceito de narrativa para se referir a teorias e
discursos interpretativos ou explicativos da realidade. Ele afirmava que
“grandes narrativas”, tais com iluminismo, marxismo e funcionalismo, entre
outros sistemas teóricos explicativos, tinham perdido sua magia no mundo
contemporâneo, mundo que o sociólogo Zygmunt Bauman viria a qualificar de
“líquido”. Se as grandes narrativas se esvaeceram, a expressão “narrativa”
sobreviveu e hoje em dia é aplicada a toda espécie de histórias e falas que
pretendem interpretar ou explicar um determinado aspecto da realidade.
Sendo assim, Lula tem sido e
continua sendo um habilidoso inventor e mercador de narrativas que dão sustento
a seu sucesso político. Seu carisma junto a seus correligionários e às massas
faz com que as narrativas que ele cria se disseminem e sejam aceitas como a
expressão verdadeira e única dos fatos. Sabe-se que Lula vive politicamente da
palavra, um pouco como Freud e a psicanálise “curam” pela palavra!
Na sua mais recente narrativa,
Lula, na tentativa de evitar o julgamento de juízes, pede que eles o deixem ser
“julgado pelo povo nas urnas”. O pleito é ardiloso e levanta questionamentos sobre
as funções dos juízes e dos eleitores na democracia. A resposta pode ser
sintetizada da seguinte forma: o juiz julga e o eleitor vota, o que deixa claro
que julgar e votar são operações mentais e a atos distintos. Ao juiz é pedido o
máximo de discernimento, imparcialidade e impessoalidade ao confrontar
comportamentos de um acusado com leis previamente elaboradas, tais como a
Constituição e os diversos códigos. Deve ele afastar-se o mais possível de suas
opiniões e preferências pessoais para, após um esforço analítico confrontando
agir e leis, proferir uma sentença argumentada e, por isso mesmo, passível de
contra argumentações ou contrapontos; daí existir possibilidades de recursos.
O eleitor, por sua vez, é autônomo
e não dispõe de aparatos instrumentais e sua decisão é soberana e definitiva,
não havendo recursos possíveis, nem possibilidade de retroagir. Certo, é muito
difícil entender como um eleitor vota e quais os reais motivos que o levam a
decidir a favor de um candidato e não de outro. Os fatores a exigir dele
escolha são múltiplos e não raramente contrários: influências e interesses
pessoais, familiares, de classe, partidários, ideologias, percepções do bem
comum, confiança num candidato, preconceitos etc. Coisa certa, o poder
executivo e o legislativo tendem a renovar seus membros sem jamais superar a
fisiologia, o clientelismo e o compadrio. “Ele rouba, mas faz”!
Indaguei 4 senhoras pobres sobre
Lula. As quatro declararam-no “corrupto, igual aos outros”! Perguntei então: em
quem você votaria se a eleição fosse hoje: as quatro responderam “em Lula”. Ao
juiz é pedido um juízo sobre fatos específicos confrontando leis escritas ou
consuetudinárias na maior imparcialidade possível, juízo aliás sujeito a
revisão por outros tribunais. Ao eleitor, é dada autonomia inquestionável.
Vê-se o quanto a narrativa de Lula é astuciosa!
(*) Sociólogo
e professor titular da UFC.
Publicado In: O Povo, Opinião, de 26/3/18. p.27.
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