segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

CAMINHOS DO CEARÁ: Bonfim Madalena, guardião de saberes

Por Izabel Gurgel (*)

Em Icó, escutei a professora Fransquinha Olimpio contando do taboado para guarda e cura de queijo na casa de Glória Dias. O sobrado fica na antiga rua das Almas. A professora contava histórias do século 19 que chegaram até ela, menina ainda, quando passou a morar no casarão tão perto da igreja dedicada ao Senhor do Bonfim.

Contava de ouvir. Houve uma escravizada Cosma contando a vida na casa de Dona Glória, sempre citada no fio de narrativas sobre os fogos de artifício em torno dos quais o ano termina e começa outra vez a cada dia primeiro de janeiro em Icó. Volto aos festejos e fogos do Senhor do Bonfim na cidade feita à margem do rio Salgado.

Vamos nós para primeiro de janeiro, cinco da tarde. Hora da saída da procissão do Senhor do Bonfim, que, literalmente, desce do altar e percorre a cidade. É levado, nos anos mais recentes, em carro-andor. Antes, ia nos ombros de homens. Conta-se que a imagem veio da Bahia, pelo sertão de dentro, viajando 'deitada' na rede, um caminho tantas vezes percorrido no Ceará do Brasil colônia de Portugal. A imagem veio de Portugal, com outro Senhor do Bonfim, o de Salvador.

Em Icó, a cada primeiro de janeiro a imagem sai do altar. Descia na madrugada (em 2023, o horário mudou). A chegada da imagem de volta à igreja aciona o acontecimento maior: a explosão dos fogos que finda a procissão. São feitos um a um, um por um, com medidas e cura específicas, como queijos artesanais. Dizemos fogos de artifício para tocar você com algo que conhece. É de outra ordem. Icoenses chamam 'as bombas do Senhor do Bonfim'. E há uma série de saberes cruzados que nos lembram dos usos do fogo como proteção e da pólvora para festejar, bentos, pois, por afirmar a vida. E não destruí-la.

Depois da procissão, segue a semana de conversa e reza e intimidade ao pé do Santo, até a 'subida' para o altar dia 6. Cada dia, cada parte, cada operação da festa, constituindo-se como fio e ponto em um bordado. Os festejos são feitos a mão. Por muitas mãos, há séculos. Uma artesania de ourives: a festa esplende a joia dos saberes da cidade. Legados e renovação em autoria coletiva. Saber, saber fazer, requer aplicação, tempo, zelo.

Mulheres e homens se dedicam a guardar os modos de fazer a festa. Uso guardar no sentido do poema "Guardar", de Antonio Cícero: "Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela. Por isso, melhor se guarda o voo de um pássaro do que de um pássaro sem voos".

Dona Fransquinha via a procissão dos altos da sua casa, a casa onde sussurram histórias contadas por Cosma. Diz-se que os fogos do Santo começaram com Dona Glória doando à igreja a pólvora acumulada para explodir um sobrado na vizinhança, o do Barão do Crato. Resposta dela às ameaças dele. As casas seguem na paisagem. E na passagem da procissão.

Quero ouvir melhor o mestre guardião dos fogos. Manoel Gonçalves de Sousa, 'Seu' Bonfim, conta sobre ancestrais seus, mulheres e homens maiores do que suas trajetórias individuais, zelando o fogo sagrado da ribeira dos Icós. Icó, precisamos escutar Bonfim Madalena.

(*) Jornalista de O Povo.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 29/10/23. Vida & Arte, p.2.

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