segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

CAMINHOS DO CEARÁ: rendeiras de Santana do Cariri

Por Izabel Gurgel (*)

O Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, em Santana do Cariri, guarda um acervo de fóssil que documenta parte da vida na Terra. Trago para este texto o registro do surgimento das flores no planeta. Você pode ver lá, como se fosse uma página de um livro na pedra, vestígio do acontecimento.

No labirinto do tempo, Santana anuncia outras floradas a cada vez que rendeiras do lugar iniciam alguém no ofício de tecer com o trocar os bilros. Olhe aqui comigo, preste atenção.

Um fio invisível redesenha a cidade na transmissão de um saber, sabemos, milenar. Não é, Milena? Enlaçar, entrelaçar são do vocabulário da existência humana antes da invenção de maravilhas como a agulha, o fuso, o tear. A linhagem, sabemos, nos antecede e nos sustenta. E nos sobrepassa. O fio é nossa ficção-fonte.

Maria Ester vai fazer 10 anos em junho. Está aprendendo a fazer renda com a mãe, Maria das Graças Amorim Paixão. Graça, por sua vez, foi iniciada adulta. As rendeiras de Santana ensinam todos os dias e de muitos modos. Graça fez curso com elas.

Assim faz Regina Lúcia Alencar Nuvens. Vi Dona Regina na casa-sede provisória das rendeiras, na praça da prefeitura. Sua mestra é Antônia Toilza Cardoso Caetano. Filha de Antônio, o Bia que faz os bilros - cabo de madeira e cabeça 'nascida' de macaúba - Nana iniciou Toilza, que se fez rendeira "já com os filhos criados".

A trança do ensinar e aprender é cipó na mata. Rizoma. Zélia Cardoso da Silva aprendeu com a prima Toilza. Marido de rendeira, agricultor, Antônio Caetano faz os 'bancos', a base de madeira para a almofada.

Fazedoras de rede de renda, usam almofadas de mais de um metro de extensão e não menos de três palmos de diâmetro. Usei mãos de gente grande para medir o cilindro recheado de palha de bananeira. Tudo de feitura manual, como os fusos, obra de Raimundo Mundeiro.

A bailarina, bem dito modo de chamar o fuso manual, a bailarina dança nas mãos, no corpo, no chão da casa. Zélia fia uma linha cor de rosa, rosa de flor de espirradeira sob fartura de sol. O fiar me faz lembrar de Côrrinha, a ceramista de Missão Velha, ela mesma o torno, o eixo do ofício que a torna o que ela é, mestra de si.

Maria Luiza Lacerda, Luizinha, é filha de Cezarina. Dona Gertrudes, Tudinha, é cunhada de Cezarina… Cezarina, elas contam, iniciou a renda de bilro em Santana.

Olhando para o baobá-menino do Terreiro das Pretas, no Crato, vi a flor suspensa, feito lustre, um primor de desenho por fora e por dentro. Seus filetes brancos, vistos de baixo para cima, com a ponta em tons claros de terra - as anteras - são um vislumbre dos fios de algodão e alfinetes de mandacaru do fazer renda. Do cacto na casa de Antônia, a Sitônia irmã de Tudinha, as 'cezarinas' tiram o espinho usado na coreografia da linha virando renda.

Lá, na casa-terreiro das irmãs nomeadas com V, Verônica nos lembrou: o sagrado está na ponta dos dedos. A casa fica na Boa Vista, a caminho de Santa Fé.

(*) Jornalista de O Povo.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 7/01/24. Vida & Arte, p.2.


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