A Bete e Ricardo Bezerra
Fui convidado, na última sexta-feira, a
tomar parte em uma reunião à tarde na Gaudincha, residência que o professor,
arquiteto e compositor Ricardo Bezerra e a sua mulher Bete mantêm na Cidade
2000. O convite logo mexeu com a minha memória: uma fotografia aérea em
preto-e-branco tirada no ano de 1970 do novíssimo bairro, com suas mínimas
casas arranjadas num xadrez cartesiano, marcado pelos cheios e os vazios, e sua
praça central, cujo desenho lembra a derretida taça Jules Rimet, o famoso
caneco, ganho pela Canarinho no Tri do México na mesma data. Miesiano de
carteirinha e já avisado sobre o que iria encontrar, preparei-me para não
gostar e botar defeito, como todo arquiteto metido (e há outro tipo?). O certo
é que ganhei uma das melhores aulas da vida.
Depois de acionar um chocalho que serve
como campainha, fui calorosamente recebido pelo meu anfitrião e por alguns
colegas e amigos que já lá estavam. O térreo é ocupado pelo atelier de um
pintor, cujos trabalhos são muito coloridos e movimentados. A casa se organiza
espacialmente em torno de um núcleo hidráulico, uma torre de banheiros e caixa
d'água. Subimos por uma escada tortuosa revestida com lascas de cerâmica. Só
então compreendi a razão de ser do nome da morada: uma homenagem a Antoni Gaudí
(1852-1926), arquiteto catalão, autor de obras célebres que marcam a paisagem
de Barcelona, e a Manoel Francisco dos Santos, o Mané Garrincha (1933 - 1983),
grande jogador, famoso pela imprevisibilidade dos seus dribles, condição essa
presente na casa.
Chegamos a uma varanda agradável voltada ao
sul. Já nos aguardava um belo bule de café forte e quente, além de uma
quituteira com tapiocas de coco de receita tradicional. O volume central
estabelece à sua volta espaços com usos diversos, onde se pode trabalhar,
comer, dormir, conversar ou curtir a vista das dunas da Praia do Futuro. Móveis
e objetos retrô (sorry, tricolores) voltam à vida através da
generosidade dos donos da casa. Enquanto batíamos papo, descobri ou imaginei
que a Gaudincha era um jardim vertical de trepadeiras floridas que, na sua
escalada, definia mil platôs (merci, Deleuze e Guattari) habitáveis. Um
teto-jardim, descoberto e aberto para os lados, nos presenteou com jabuticabas
e bananas-passa. Vizinha, a cidade do capital, feia e previsível, com suas
luzes.
Resumo da ópera: um banho de simplicidade e
sabedoria na construção de um ambiente doméstico. Casa com cara de casa, com a
personalidade dos seus moradores, e não uma máquina de morar, branca e anódina,
como naquele filme do Jacques Tati. Na despedida, a caminho do bar, eu e o
Ricardo já tínhamos sobre as nossas cabeças as primeiras estrelas da noite. No
percurso, pensei de mim para comigo: "A casa é de quem a habita. Por que
os arquitetos gostam tanto de determinar o morar alheio?". Na morada que
acabara de visitar, o verde dialogava com a tapioca que por sua vez indagava a
escada que levava aos aposentos que se comunicavam com o céu. O material e o
imaterial interligados. Lá não havia fronteiras, apenas continuidades. Viver
ali só pode ser bom demais.
(*) Arquiteto e
professor da UFC. Sócio do Instituto do Ceará. Colunista de O Povo.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 26/05/25. Vida & Arte. p.2.
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