Por
Olavo de Carvalho
Quanto mais tempo fico nos EUA,
mais nítida se torna, aos meus olhos, uma diferença crucial entre o Brasil de
hoje e as nações civilizadas: é a completa ausência, no nosso país, de qualquer
debate científico ou filosófico, pelo menos audível em público, ou mesmo de
qualquer consciência, entre as classes alfabetizadas, de que esses debates
existem em algum lugar do planeta. Só esse fenômeno, por si, já basta para
mostrar que algo aí deu muito errado, que a vida dos brasileiros está indo numa
direção francamente regressiva, incompatível com o estado da nossa economia e
com a pretensão nacional de representar algum papel significativo no cenário do
mundo.
Qualquer professor universitário
ou intelectual público que, desafiado, se feche em copas e fuja à discussão sob
o pretexto de que suas crenças são lindas demais para rebaixar-se a um
confronto com a idéia adversária, cai imediatamente para o segundo escalão,
quando não se torna objeto de chacota. Os próprios correligionários do prof.
Richard Dawkins arrancaram-lhe o couro quando ele, afetando inatingível
superioridade olímpica, se esquivou a um debate com o filósofo William Lane
Craig.
No Brasil só existe o consenso
escolar. Ele impera sobre as cabeças dos intelectuais com a mesma autoridade
indiscutível com que se impõe, nas salas de aula, aos trêmulos e indefesos
corações infantis.
Basta você questionar de leve
algum item do Credo ginasiano, e as reações indignadas mostram o escândalo, o
horror que você despertou nas almas virgens, jamais tocadas antes pelas dúvidas
que, em outros países, pululam por toda parte e alimentam discussões sem fim.
Especialmente os ídolos da
ciência popular, Newton, Galileu, Darwin ou Einstein, adquiriram no Brasil o
estatuto de divindades intocáveis, e não só entre meninos de ginásio, mas entre
professores universitários, cientistas e formadores de opinião. Critique um
desses habitantes do Olimpo, e o tom das respostas lhe mostrará, por a + b, que
neste país até mesmo banalidades arqui-sabidas dos historiadores por toda parte
são novidades escandalosas e provas incontestáveis de que você é um louco.
Quando mencionei, por exemplo,
as conseqüências nefastas que o mecanicismo newtoniano espalhou na cultura
européia – fato que já é de domínio público pelo menos desde o século XIX –, só
não me xingaram a mãe porque não acreditavam que alguém capaz de atentar contra
a memória do autor dos Princípios Matemáticos da Filosofia Natural
pudesse jamais ter tido mãe.
Quando escrevi que o próprio
Charles Darwin fôra o inventor do design inteligente hoje tão abominado pelos
evolucionistas – coisa que não pode ser ignorada por ninguém que tenha lido
algo mais que as orelhas de A Origem das Espécies --, fui
imediatamente rotulado como fanático religioso indigno de ocupar um espaço na
mídia.
Quando expliquei que sem o
conhecimento do simbolismo astrológico é impossível compreender direito as
concepções cosmológicas de Sto. Tomás de Aquino ou a estética das catedrais
góticas – o que é a obviedade das obviedades para quem haja estudado o assunto
--, passei a ser chamado pejorativamente de “astrólogo” pelos srs. Rodrigo
Constantino e Janer Cristaldo, que, como ninguém ignora, são autoridades
insignes em História medieval.
A distância, em suma, entre o
que se discute desses assuntos na Europa e nos EUA e o que se sabe a respeito
no Brasil já se ampliou de tal modo, que ter algum conhecimento nessas áreas se
tornou realmente perigoso: a ignorância completa e radical é hoje a única fonte
de credibilidade, o único depósito de premissas onde o opinador pode buscar
argumentos com a certeza de que soarão razoáveis ante uma platéia ainda mais
ignorante que ele.
Tendo violado essa regra,
tornei-me o único comentarista brasileiro de mídia ao qual incumbe, sempre e
sistematicamente, o ônus da prova -- com o detalhe de que, quando termino de
provar tudo direitinho, os fulanos mudam de assunto e encontram outro motivo
qualquer para continuar achando ruim. Às vezes chegam, nisso, a requintes de
imbecilidade jamais alcançados antes no universo. Indignados de que, num artigo
aliás excelente sobre Otto Maria Carpeaux, o prof. Maurício Tuffani citasse de
passagem o meu nome, alguns leitores ofereceram a singela sugestão de que eu
fosse excluído para sempre de toda mídia. O autor do artigo, então, com a maior
paciência, explicou que no caso isso não era possível, por ter sido eu mesmo o
editor de um dos livros de Carpeaux ali mencionados. Com toda a evidência, os
remetentes prescindiam de ter lido o livro para decidir quem podia ou não podia
ser citado num comentário a respeito. Era o argumentum ad ignorantiam
elevado às alturas de um mandamento divino: quanto menos você sabe, maior a sua
autoridade na matéria.
Publicado no Diário do Comércio, 2 de maio de 2013.
Nota do Blog: o texto não
é novo, mas segue atualizado.
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