Por Olavo de Carvalho
O célebre historiador britânico George Macaulay
Trevelyan, que ninguém dirá ter sido um conservador, escreveu em 1947: “A mais
odiosa forma de preconceito moral está na historiografia que condena em voz
alta os crimes e perseguições de um lado, e esconde ou defende os do outro.”
Ele não imaginava que um dia, num país do Terceiro Mundo, haveria de aparecer
uma comissão subsidiada com dinheiro público para dar cunho oficial
precisamente a esse tipo de historiografia. Talvez ele imaginasse que
semelhante aberração só poderia existir nas ditaduras comunistas, onde a
mentira histórica, imposta à população interna para fins de controle social e
distribuída no restante do mundo como arma de guerra psicológica, era a norma
em vez da exceção.
Como membros do esquema revolucionário tricontinental
montado por Fidel Castro, que os recrutou, treinou, equipou, comandou e
protegeu, nossos guerrilheiros e terroristas dos anos 60-70 foram cúmplices do
morticínio espalhado pela ditadura cubana na América Central, na América do Sul
e na África, o qual não fez menos de cem mil vítimas (v. http://cubaarchive.org/home/).
Pelos critérios do Julgamento de Nuremberg, José Dirceu,
Dilma Rousseff, José Genoíno e tutti
quanti têm muito mais crimes pelos quais responder do que cento e poucos
assassinatos praticados no Brasil, que são o máximo que a mídia paternal lhes
atribui, desculpando-os aliás, implícita ou explicitamente, como reação ao
golpe de 1964, embora as guerrilhas começassem em 1962.
O que torna essa obviedade invisível não é só a
deformação do julgamento histórico, mas a completa falsificação geográfica do
cenário onde os fatos se desenrolaram. Quando falam da violência militar,
jornalistas e historiadores universitários jamais se esquecem de inseri-la no
quadro internacional, descrevendo-a como manifestação local da articulação
anticomunista montada entre vários governos do continente, com o apoio dos EUA.
Nessa perspectiva, nossos militares aparecem como cúmplices de todos os crimes
praticados contra os comunistas em escala continental. Já
as guerrilhas são invariavelmente mostradas como fenômeno apenas local, sem
conexão internacional significativa nem portanto culpa nenhuma pelas misérias
que o governo cubano andava aprontando em três continentes.
Essa dupla geografia baseia-se, por sua vez, numa
falsificação radical da escala cronológica, pois os governos militares só se
articularam para um combate conjunto às guerrilhas em 1975 – a chamada
“Operação Condor” --, ao passo que o comando unificado das guerrilhas no
continente já existia desde 1962, quando Fidel Castro fundou a OLAS,
Organização de Solidariedade Latino-Americana, reforçada pela Conferência
Tricontinental de Havana em 1966.
Ou seja: a reação militar ao avanço comunista ocorreu de
início sob a forma de iniciativas nacionais independentes, só tardiamente se
articulando em escala maior, ao passo que as guerrilhas surgiram desde o início
como um empreendimento transnacional organizado. Na nossa mídia, tanto a escala
geográfica quanto a cronologia dos fatos são sistematicamente invertidas há
pelo menos duas décadas.
Acrescente-se a isso que, à margem dos grandes jornais,
uma operação gigantesca de desinformação a respeito se desenvolve em livros
escolares, programas de TV e sites da internet, a começar pela maldita
Wikipedia, concebida precisamente para ser levada a sério só por meninos de
ginásio, onde o início da Operação Condor aparece removido para datas muito
anteriores, às vezes até para os tempos de João Goulart na presidência, levando
a falsificação ao extremo da mitologia propagandística mais torpe e descarada.
Produzido com entusiasmo feroz e renitente por uma militância multitudinária, o
volume desse material já ultrapassou de há muito, pela quantidade inabarcável,
qualquer possibilidade de contestação racional.
O advento da “Comissão da Verdade” foi preparado com
bastante antecedência pela intoxicação goebbelsiana da opinião pública.
***
Se você estranha o descaramento com que os apóstolos do
“mundo melhor” mentem, trapaceiam, metem a mão no bolso dos outros e ainda se
acham as encarnações supremas da virtude, fique sabendo que isso não é nenhum
desvio, nenhuma perversão do espírito revolucionário: é o próprio espírito
revolucionário. Eis como Hippolyte Taine, o grande historiador da Revolução
Francesa, descrevia em 1875 a
mente dos jacobinos:
“Segundo o
jacobino, a coisa pública é dele, e, a seus olhos, a coisa pública abrange
todas as coisas privadas, corpos e bens, almas e consciências. Assim, tudo lhe
pertence. Pelo simples fato de ser jacobino, ele se acha legitimamente tzar e
papa... Sendo o único esclarecido, o único patriota, ele é o único digno de
comandar, e seu orgulho imperioso julga que toda resistência é um crime... No
entanto, resta-lhe pôr em acordo seus próximos atos com suas palavras recentes.
A operação parece difícil, pois as palavras que ele pronunciou condenam de
antemão os atos que ele planeja. Ontem, ele exagerava os direitos dos
governados, ao ponto de suprimir os dos governantes; amanhã ele vai exagerar os
dos governantes até suprimir os dos governados. A dar-lhe ouvidos, o povo é o
único soberano, e ele vai tratar o povo como escravo. A dar-lhe ouvidos, o
governo não é mais que um criado de quarto, e ele vai dar ao governo as
prerrogativas de um sultão. Ontem mesmo ele denunciava o menor exercício da
autoridade pública como um crime, agora ele vai punir como um crime a menor
resistência à autoridade pública.”
Publicado no Diário do Comércio, 30 de abril de 2013.
Nota do Blog: o texto não
é novo, mas segue atualizado.
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