Por Marcus Vale (*)
Em meu
confinamento, devido ao novo Corona vírus (Covid-19), achei que seria
interessante lembrar (na verdade, para uma grande parte de nosso povo, o verbo
mais correto seria informar) que já passamos por algo catastrófico, em
Fortaleza, no final do Século XIX se estendendo para o Século XX.
Foi durante
a grande seca de 1877. Fortaleza ficou abarrotada de sertanejos fugindo da seca.
Dos 130.000 habitantes, 110.000 (84%) eram de flagelados. Ficaram alojados
precariamente na periferia da cidade, sem a menor condição sanitária e alimentando-se
muito mal. Todas as condições propícias a uma epidemia. E a Varíola foi a peste
da vez.
Em outubro de
1878 foram contabilizados 5.000 casos que resultou em 592 mortes. Em novembro,
calculava-se 40.000 doentes com 9.721 mortes. O mês de dezembro teve uma média
de 500 mortos diários. Mas não se pode esquecer do dia 10 de dezembro de 1878 em
que Fortaleza teve 1.004 mortos que tiveram de ser enterrados em vala comum. Os
coveiros disputavam seu espaço de trabalho com os urubus. Calcula-se que a
cidade perdeu por volta de um quinto de sua população. Fosse hoje, equivaleria
a mais de 500.000 pessoas, considerando nossa atual população de 2.600.000
habitantes.
Assim como
chegou, a Varíola se foi. Mas em 1900, quando mais uma seca assolou o Ceará, a Varíola
voltou com força total. Aqui começa a história que quero contar cujo personagem
central é Rodolpho Theóphilo.
Nosso herói
foi um farmacêutico, intelectual, escritor (28 livros), inventor da cajuína, membro
e um dos presidentes da academia literária Padaria Espiritual, divulgador
científico (essa é minha visão), abolicionista, entre outras qualidades. Na
linguagem atual, poderia ser classificado com um ativista social.
Rodolpho nasceu
em 1853, em Salvador (por acaso) onde passou apenas alguns dias quando voltou para
Fortaleza com seus pais, o médico cearense Marcos José Theóphilo e sua mãe
baiana Antônia Josefina Sarmento. Seu pai teve um grande protagonismo sanitário
no Ceará pois era um dos poucos médicos com quem o governo contava para
combater as frequentes epidemias que o estado sofreu, entre elas a Febre
Amarela, a Cólera e a Varíola. Marcos
morreu pobre e endividado aos 43 anos deixando desamparados a viúva, D.
Guilhermina, madrasta de Rodolpho e irmã de sua mãe e mais cinco filhos, sendo
Rodolpho o mais velho.
Com muita
dificuldade, Rodolpho conseguiu um emprego e concluiu seus estudos. Assim como
seu pai, Rodolpho também estudou em Salvador onde formou-se em Farmácia na
Faculdade de Medicina da Bahia. Voltou da Bahia formado em 1875 e, com a ajuda
de amigos de seu pai, montou farmácia em Pacatuba e depois em Fortaleza. Casou-se
com D. Raimundinha Cabral, filha de um comendador de Pacatuba.
Em 1900,
Rodolpho estava em férias na Bahia quando foi informado sobre a nova epidemia
de Varíola em Fortaleza. Aproveitando sua presença em Salvador, conseguiu
aprender a fazer a vacina e a vacinar. Em seguida, comprou todos os
equipamentos necessários para fabricar a vacina e dois bezerros e os trouxe para
Fortaleza, desembarcando na cidade em 6 de dezembro daquele ano.
Iniciou o
processo de inoculação dos bezerros tendo 3 insucessos até que concluiu que o
material trazido da Bahia estava inativo. Conseguiu, de um conhecido de São
Paulo, um novo material e, 3 dias depois da inoculação, as pústulas da doença
atenuada apareceram nos animais.
No início de
1901, Rodolfo anunciou seu feito e convidou a população a se vacinar em sua
própria residência, na Rua Visconde Cauhype, número 4, hoje Avenida da
Universidade. Havia transformado sua casa em vacinogênio. Sem nenhuma ajuda do
governo, em 4 meses Rodolpho vacinou 1.200 pessoas da cidade. Entretanto, a
população da periferia não atendia seu chamado. Em agosto, Rodolfo comprou um
cavalo e diariamente cavalgava até os subúrbios para vacinar as pessoas. Encontrou
muita resistência.
Rodolfo era
um homem alto, magro e de longa barba, que costumava usar uma comprida casaca
preta. Conta-se que a primeira vez que apareceu por detrás das dunas a oeste da
cidade, montado em um cavalo branco, chegou a ser comparado pelas pessoas
daquelas favelas com o Cavaleiro do Apocalipse. Lira Neto, em seu livro “O
Poder e a Peste – A Vida de Rodolpho Theóphilo”, descreve o episódio assim: “Quando
se soube que ele estava vindo para vacinar os moradores daquele lugar, foi uma
correria sem fim. Mães pegaram filhos pequenos ao colo e desabaram a correr,
aos gritos, aterrorizadas. Outros meninos de toda idade e tamanho, fugiam por
conta própria, aos pinotes, olhos arregalados, taboleiro afora”. Corria entre
eles a ideia de que a vacina era uma desculpa que o governo inventara para
acabar com os pobres e que Rodolfo era a própria peste disfarçada de gente.
Mas Rodolpho
não desistiu. Para convencer aquela gente usava 3 métodos. Primeiro contava
histórias fantásticas que envolviam santos como o Santo Jenner, na verdade o
inglês inventor da vacina que, em sua história, aconselhava a todos aceitarem a
vacina. Um segundo método era ameaçar os renitentes com multas pesadas que, na
verdade, ele nem poderia aplicar pois não era agente do governo. Às vezes
funcionava e às vezes não. Aí entrava o terceiro método. Pagava para vacinar.
Tudo por sua conta.
O governo do
oligarca Antônio Pinto Nogueira Accioly, passou a persegui-lo, acusando-o de
desmoralizar as autoridades. Assim, perdeu sua cátedra no Liceu, foi acusado de
charlatão, tendo sua cajuína e seu estabelecimento farmacêutico boicotados,
entre outras coisas. Mesmo sob essas condições, vacinou pessoalmente, milhares
de pessoas. Em 1902 não foi registrado um só caso de varíola na capital
cearense. A Varíola estava extinta em Fortaleza.
Após anos
sob pressão e para se defender, em 1907, Rodolpho enviou uma amostra de sua
vacina para a avaliação do Instituto Manguinhos, atual Fiocruz, no Rio de
Janeiro. A resposta chegou cheia de elogios à qualidade da vacina cearense.
Rodolpho Theóphilo,
o Varão Benemérito da Pátria, continuou a vacinar, sem descanso, até próximo de
seu falecimento, em 1932.
Fortaleza, 30 de março de 2020
(*) Professor do aposentado do Curso de Farmácia da UFC.
PhD pela Universidade de Oxford. Coordenador do projeto Seara da Ciência da
UFC.
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