terça-feira, 18 de novembro de 2014

Soldados jogavam futebol durante ataques na 1ª Guerra Mundial

Cartaz convoca jogadores de futebol a se alistarem no "Batalhão do Futebol"
Por Adriano Wilkson
Do UOL, em São Paulo

Cem anos depois de seu início, ainda é difícil entender o que foi a Primeira Guerra Mundial. Você pode pensar nas trincheiras lotadas, no aspecto lunar do terreno entre elas, nos ratos, insetos, excrementos e umidade, na chuva, no frio glacial, na proliferação de doenças de todos os tipos e na ausência de antibióticos. Você pode pensar que a estratégia dos comandantes de todos os exércitos envolvidos era esgotar as forças do lado oposto, o que significava basicamente desenvolver formas eficazes de matar pessoas.
Você pode pensar nos gases venenosos espalhados pelo ar, nos ataques aéreos sem hora para eclodir, no lançamento de bombas cada vez mais letais e na impossibilidade de tratar os feridos ou mesmo de enterrar a maioria dos mortos. Você pode pensar em números: 16 milhões de cadáveres, 20 milhões de feridos, 6 milhões de corpos jamais encontrados.
Mas você pode pensar também no London Irish Rifles, um batalhão de irlandeses formado por jogadores de futebol. No meio de um ataque ao exército alemão, os soldados resolveram chutar uma bola de couro em direção ao inimigo.
Foi na Batalha de Loos, na França, em 1915, o segundo ano da guerra. Os jogadores/soldados fizeram chegar às trincheiras seis bolas de couro e combinaram levá-las intactas ao terreno alemão. Os superiores souberam do plano e não o autorizaram. Cinco bolas foram encontradas e destruídas. Mas o soldado Frank Edwards escondeu a última embaixo da farda e a inflou momentos antes do ataque.
Quando o apito soou indicando o início do assalto, Edwards escalou a parede da trincheira e chutou a bola contra os alemães. Ela ficou presa em uma cerca de arame farpado ali perto. O soldado conseguiu recuperá-la e a conduziu por cerca de 20 metros em direção ao exército germânico até ser abatido pela artilharia.
A bola continuou quicando no campo de batalha, enquanto o massacre acontecia em volta dela. Nos registros do regimento, consta que homens foram vistos trocando passe até sumirem no meio de nuvens de fumaça além das linhas inimigas. "London Irish, para a bola!", eles gritavam conforme avançavam.
Eles acreditavam que jogar bola em uma das guerras mais sangrentas da humanidade era exibir bravura.
O futebol em todo lugar
Não foi um ato isolado. O futebol estava por toda parte na Primeira Guerra Mundial. Está nas fotos posadas de soldados e oficiais ao lado de canhões e bolas de couro, alguns usando rudimentares máscaras antigás que os assemelhavam a personagens de filmes de ficção científica. Está nos cartazes de guerra convocando especificamente jogadores a se alistarem no exército, já que eles estavam entre os homens mais robustos e fisicamente aptos a uma empreitada como aquelas.

Está no famoso "Batalhão do Futebol", um regimento britânico formado principalmente por atletas, juízes e torcedores, que tiveram a chance de lutar (e morrer) lado a lado. Mais de mil membros desse batalhão pereceram durante a guerra.
Está na poesia de Siegfried Sassoon, um escritor que serviu como oficial do exército britânico e lia notícias de futebol para acalmar seus homens antes de um ataque. Está na saudação feita pelo soldado alemão que propôs a famosa Trégua de Natal de 1914, quando os dois lados interromperam as hostilidades para trocar presente e bater bola entre as trincheiras. As primeiras palavras ditas pelo alemão aos ingleses foram um comentário sobre o Tottenham e o Arsenal.
Se havia alguma coisa que ligava grande parte daqueles homens além da necessidade mútua de se matarem era o fato de que eles eram apaixonados por futebol, um esporte que estava no auge da popularidade na Europa.
E transformar a guerra em um jogo era uma forma de suportá-la. Em um episódio que ficou conhecido como "O Ataque do Futebol", o capitão Wilfred Nevill propôs um desafio a quatro de seus fuzileiros: o primeiro que conseguisse levar uma bola de futebol até as linhas inimigas, ganharia um prêmio. O próprio Nevill iniciou o ataque chutando a sua bola em direção ao exército rival. Foi imediatamente morto pela artilharia. Um sobrevivente relatou depois:
"Quando o tiroteio acabou, eu vi um fuzileiro subir no parapeito em direção ao terreno entre as trincheiras, incentivando os outros a fazerem o mesmo. Enquanto fazia isso, ele chutou uma bola. A bola subiu e cruzou a linha alemã. Isso pareceu um sinal para avançar."
Chutar uma bola no meio das batalhas "se tornou rapidamente um ato que mostrava status e bravura", de acordo com Paul Fussell, autor do livro The Great War and Modern Memory ("A Grande Guerra e a memória moderna", sem edição no Brasil).
O fim da inocência
"Toda guerra aniquila a inocência, mas nenhuma guerra mais do que essa", escreveu o jornalista Brian Phillips sobre o conflito que começou em 1914. No ano seguinte, ainda existia inocência no meio da barbárie.
Em 24 de abril de 1915, 50 mil torcedores estavam em um estádio de Manchester, na Inglaterra, para ver a final da Copa da Liga entre Chelsea e Sheffield United. Dois dias antes, havia começado a batalha de Ypres, na Bélgica, uma das mais sangrentas da Primeira Guerra. Milhares de soldados franceses morreram logo nos primeiros minutos do conflito ao inalar um gás venenoso dispersado no ar pelos alemães – alemães também morreram porque o vento soprava para todos os lados.

Bola de couro usada na 1ª Guerra foi encontrada em 2011
A batalha ainda estava acontecendo quando Chelsea e Sheffield entraram em campo. Nas fotos da partida, é possível ver militares em muletas, militarem com faixas médicas na cabeça, militares que tiraram férias da barbárie da guerra para ver futebol.
Depois disso, intelectuais nacionalistas começaram uma campanha para interromper o calendário esportivo e forçar atletas a se alistarem no exército. Era um absurdo, diziam eles, que esportistas continuassem suas vidas, enquanto milhares de pessoas morriam no exterior para defender a nação. "Nunca a mesma inocência de novo", escreveu o poeta Philip Larkin, sobre os eventos esportivos no meio do conflito.
Um século e incontáveis guerras depois, continuamos falando de futebol em termos bélicos porque a metáfora segundo a qual uma partida é uma batalha ainda faz sentido. O jogador que marca mais gols tem a artilharia de um torneio. Ele também pode ser um matador e um Gladiador. Uma equipe que é goleada sai de campo massacrada. Um chute pode ser um tiro, como um tiro de meta ou um tiro livre. Já um chute muito forte é uma bomba. Um time que evita o rebaixamento no fim do campeonato é um time de guerreiros. O técnico é chamado de comandante e o líder do time é o capitão.
Cem anos depois ainda é difícil entender o que foi a Primeira Guerra Mundial, mas parece que a guerra nunca saiu de nós.
Fonte: UOL, Notícias, em 24/08/2014. Divulgação/Leather Conservation Centre.

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