quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

CERVANTINA

Pedro Henrique Saraiva Leão (*)
Quisera escrever uma crônica dezembrina, mas sem os cediços chavões sazonais. Sem neve, renas, ou papai-noel. Sem trenós, apenas carros–pipa. Não havia avelãs, pinheiros, mas xiquexique e mandacarus. Viera transformar o agreste em pomar. Recolher facas e distribuir pão. Vinha de longe... tangendo velhas ovelhas, cavalgando trôpego pangaré. Apresentava profundos vincos no rosto, quais talhados a golpes de faca. Suara muitos sóis, irrigando aquele chão gretado. Muitas luas prateavam seus cabelos. Transpirava o sangue do sofrimento.
No gibão de couro tocos de pão, nacos de fumo, pedaços de rapadura e resto de farinha, lembravam o estirão percorrido. Lutara contra seca, aluvião, fome, fauna e flora, enfrentara leões, moinhos de vento, desafiara a sorte, o amor e a morte. Provara até “um certo contato com a lua”, evocando o poeta Antônio Girão Barroso. Escapara de areias movediças. Bárbaros e bérberes. Fora picado pela cobra que criara; indabém que Deus, ao concebê-lo, vedara-lhe o corpo para os vírus, vícios e venenos da vida.
Peregrinando por ínvias vias, atravessara rios, vadeara riachos, escalara serras, penedias e noites sem fim. Certa feita, embora cogitando desistir, descumprir promessas, pedir meças ao homem lá de cima, pensou mais. Carregando sua cruz, preferiu aguardar o último trem. Esperar, ia. Acreditava valer a pena, pois tinha a alma grande. Só, carecia de mais paciência. Tê-la-ia! O tempo não tarda. Alexandre Dumas (1802-1870), aquele do “Conde de Montecristo”, já dissera estar a sabedoria contida em duas palavras: paciência e esperança. Sabia que vida é véspera. Aliás, a água da chuva não era preta como aparentavam as nuvens, repetia o professor Newton Gonçalves, na Faculdade de Medicina do meu tempo (1958-1963).
Cuidava agora fosse nascer de novo, novamente. Vencidos os demais perigos da existência, as incertezas das esquinas, o desamor dos amigos, os desacertos do destino, domadas as dores da consciência, chegava, afinal. Não soaram sinos à sua chegada, mas balidos de ovelha, e guizos de cascavel. Bois berravam o contraponto. Não trazia ouro, mas pedaços de mica e galhos de mirra por incenso.
Contudo, trazia esperança. Viera adorar o divino infante Jesus, terno, tenro e eterno ramo de fé, para plantarmos no coração e embalar nos nossos braços cansados. Já vemos uma estrela grande no céu. Chegou a hora da estrela. Renovemo-nos para o novo Natal. Esperamos que Cristo perdoe nossos pecados, nossas dúvidas e dívidas, e mande pagar nossos precatórios. Lembrou-se da volta dos mortos para a consoada (ceia) natalina. Chorou. Aleluia. Feliz Natal!
(*) Professor Emérito da UFC. Titular das Academias Cearense de Letras, de Medicina e de Médicos Escritores.
Fonte: O Povo, 13/12/2017. Opinião, p.14.

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