Por Izabel Gurgel (*)
"Pra completar, parou uma garça
branca". Escuto Seu Milton, Francisco Milton de Souza Lima, no bosque do
Paço Municipal, o casarão por trás da Catedral, no Centro de Fortaleza. Estamos
em 2006, no segundo semestre do ano, como agora.
Anotei no caderno, logo depois da garça,
anum branco, anum preto, bem-te-vi, sabiá, periquito australiano. Seu Milton
dizendo da fauna do lugar. Acompanho, além da fala, a luz variando, filtrada
pelo verde. Entra no rol dos lugares de sensação térmica agradável mesmo com o
sol tinindo.
O que me faz lembrar de calçadas nos altos
da cidade com vista para o mar, como a da Santa Casa de Misericórdia. Bonito
caminho do vento no Centro. A Cidade é uma experiência que a gente sente no
corpo.
Sobre o bosque, Seu Milton se referia às
árvores como de fato o que eram, criaturas do seu convívio. Pé de acerola,
caju, castanhola, fruta-pão, jambo, laranja, manga. Contei pra ele que, entre a
infância e adolescência, uma tia morando na vizinhança, íamos as primas para
pegar fruta. Chegávamos com saco de mercantil, então de papel. Com sapotis por
cima, eram levados com cuidado de mãe de primeira vez dando banho em
recém-nascido.
Pedi e ele fez a lista de plantas, desde as
de forração às de copa mais alta, semelhando nave de igreja. Guardo a folha,
papel timbrado da Prefeitura de Fortaleza, datilografada em duas colunas. São
48 nomes seguidos de "e muitas outras plantas". Anotado à mão, ao
final, mini-lacre vermelho, mini-lacre amarelo, mini-lacre azul. Em maiúsculas,
área quadrada. Na linha seguinte, 17.313 metros quadrados. Caneta preta.
A lista começa com "1 Pé de
Carambola" e vai até "1 Pé de Mulungu", sublinhado para dizer da
divisão feita na organização da lista. Segue, então, "Plantas de
Flores", aberta por "Abacaxi de Salão". Conhece?
E "Panamá", Pingo de Ouro,
"Eu e tu"?
Vivi o bosque também como passagem. De
entrar pela então sede da Funcet, no comecinho da Pereira Filgueiras, descer
pelo anfiteatro e sair pelo Paço. Ou fazer o caminho contrário.
Pé de graviola, pitomba, maniçoba, jatobá,
munguba. Feijó, juá, juazeiro. "22 Pé de Palmeira", quatro de goiaba,
dois de ciriguela. Um dos baobás da cidade está lá no quintal da antiga
residência do Bispo, onde passa o Pajeú, antes de margear o estacionamento do
Mercado Central e chegar no mar.
"Limpar o Pajeú. E deixar de pensar
que é esgoto." Diz Seu Milton. É a última linha anotada no caderno.
Abrir o bosque para a gente aprender quase
seria a última linha hoje. Mas "Torém - brincadeira dos índios
velhos", do antropólogo Gerson Augusto de Oliveira Jr., não sai dos
canteiros da minha memória. Professor da Uece, Gerson mostrou o livro no Paço,
em noite com Tremembés de Almofala dançando o dito Torém, que é árvore.
Daquelas que cresce procurando sol e tem, dentre os ofícios, o de favorecer o
reflorestamento. O livro (editora Annablume, 1998) é uma joia do Ceará.
(*) Jornalista de O Povo.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 14/09/25. Vida & Arte, p.2.
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