Por Noam Pondé
Especial para o UOL
A fosfoetanolamina se tornou nos
últimos meses um dos mais frequentes assuntos discutidos entre os profissionais
que trabalham com oncologia. Apesar dos avanços no tratamento do câncer e de
que pacientes curados tenham se tornado comuns nos consultórios, a triste
realidade é que o câncer ainda causa muitas mortes e muito sofrimento. Sofrem
os pacientes e todos que os cercam – familiares, amigos e profissionais da
saúde. Como oncologista, poucas situações são mais desafiadoras do que lidar
com um paciente ou uma família em desespero.
Quando o câncer entra em nossas vidas, queremos bani-lo,
temos a esperança que tudo volte a ser como antes e relutamos a aceitar que
isso nem sempre é possível. Diante desta realidade, todos nós fazemos uma
escolha, consciente ou inconscientemente: aceitamos a realidade – mesmo que aos
poucos– e construímos novas formas de esperança ou negamos a realidade e
deixamos que a esperança se transforme em fantasia. O câncer é impiedoso com
fantasias, e, inevitavelmente, elas são quebradas, para o enorme sofrimento dos
que as construíram. Todos os profissionais da oncologia já presenciaram esse
triste processo, e, frequentemente, o tratamento do tumor é mais simples do que
o tratamento das fantasias que ele provoca.
É da fantasia que gera a profusão de remédios milagrosos
e terapias alternativas que prometem a cura do câncer. Todo oncologista aprende
a conviver, tolerar e, por vezes, até respeitar práticas alternativas – a ponto
de algumas delas, modernamente serem integradas à prática, após estudos sobre
sua eficácia e segurança. Mas, em algumas situações, especialmente quando o
manto da ciência é usado para encobrir o pensamento mágico, a convivência entre
oncologia e terapia alternativa se torna difícil. A fosfoetanolamina é um
destes casos.
O problema da comunidade científica não é, como vem sendo
alegado pelos "pesquisadores" envolvidos na exposição de seres
humanos de maneira irregular a uma substância experimental, em interesses
financeiros, falta de apreço pelo português ou pelo Brasil, ou mesmo falta de
empatia pelo sofrimento dos pacientes. São questionamentos relevantes de ordem
ética, científica e a preocupação com as consequências para pacientes e para o
SUS.
Como falar em ética e regras em pesquisa quando pessoas
estão sofrendo e morrendo? Será que não deveríamos tomar medidas excepcionais
quando pacientes estão desesperados? É especialmente por respeitar a solenidade
desta situação tão comum que não devemos tomar medidas excepcionais e sim
seguir as regras que garantem que não vamos adicionar mais sofrimento a essa
situação. Pacientes e familiares têm o direito de se desesperar, já médicos e
pesquisadores, não.
No passado, cientistas inescrupulosos usaram das mais
diversas formas o poder que o desespero e a falta de informação de pacientes
conferem para realizarem seu desejo por fama, por respeito e até por dinheiro.
Escândalos como os experimentos nazistas e o estudo de sífilis em Tuskegee
levaram governos e pesquisadores a perceberem que a ciência, descolada do
respeito à autonomia do paciente e da honestidade, pode cometer crimes graves.
Foi construído um sistema para impedir que isso se repetisse.
Pacientes devem saber exatamente o potencial da
substância em estudo. Devem ser livres para entrar e sair de estudos e nunca
podem ser forçados ou manipulados. A transparência deve ser total. Dados devem
publicados, avaliados, hipóteses testadas repetidamente por diferentes grupos.
Cientistas sérios apresentam suas conclusões e suas
dúvidas em congressos na frente de milhares de colegas que estão lá para
aprender e para questionar cada detalhe. Dados referentes a centenas ou
milhares de pacientes são necessários antes de declarar uma substância eficaz. Apelos
emocionais não são lançados para apoiar dados –pois emoções não apoiam dados e
sim colocam em questão sua qualidade e até sua própria existência. Do ponto de
vista ético, a fosfoetanolamina não pode ser considerada um remédio, pois ainda
não passou por todo esse processo.
A prática clínica e a pesquisa em biologia celular nos
mostram todos os dias o adversário que enfrentamos. Drogas que no laboratório
parecem funcionar e matam células cancerígenas podem não ser eficazes quando
aplicadas ao paciente. Drogas que são eficazes, muitas vezes, deixam de ser
para um paciente, pois o tumor se adapta, evolui e passa a resistir a elas. A
célula cancerígena é flexível e adaptável e pode escapar de um único remédio de
muitas maneiras diferentes.
Portanto, do ponto de vista científico, está claro que um
remédio nunca será "a cura do câncer". As declarações sobre a
polivalência da fosfoetanolamina, que age supostamente sobre qualquer tumor e
em qualquer cenário clínico (seja tumor localizado ou disseminado) não fazem
sentido do ponto de vista científico. Inibir o crescimento de células em
laboratórios é uma coisa, em seres humanos é outra.
Não são só pessoas que auxiliam o progresso da oncologia,
mas também instituições – hospitais, universidades, a indústria farmacêutica
(que é um aliado fundamental e não um adversário, como muitos imaginam) e
agências reguladoras. No Brasil, esta agência se chama Anvisa. Embora muitas
vezes seus processos sejam por demais lentos, seu trabalho – em essência
declarar uma droga como tratamento para uma doença no Brasil – exige cuidado,
aderência absoluta às evidencias e liberdade de ação.
Pressão por autorização de drogas sem as evidências
adequadas, ou pior, de liberações "extraordinárias" por pretensas
razões humanitárias, seja esta pressão oriunda de setores da sociedade, ou mais
grave ainda, de políticos com cargos públicos, é inaceitável. Uma universidade
ser obrigada a fornecer uma substância sem valor científico comprovado pode ser
o primeiro passo para o SUS ter que custear qualquer forma de terapia
alternativa.
Como oncologista, eu rejeito a fosfoetanolamina como
forma de tratamento científico para o câncer e não a indicaria em nenhuma
situação. Isso pode mudar, se ela for eficaz em testes adequados e conduzidos
de maneira ética e sem pressão externa sobre os pesquisadores. Mas não mudará a
minha convicção de que fantasias ferem mais do que ajudam e de que, embora os
pacientes possam fazer uso de seu livre arbítrio e usar a fosfoetanolamina de
maneira independente, médicos, pesquisadores e governantes têm a
responsabilidade de agir dentro dos limites da realidade e nunca estimularem
fantasias que só podem terminar por causar mais sofrimento.
Fonte: Do UOL
Notícias, de 15/12/2015.
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