Por JOSÉ CARLOS LINHARES (*)
"O encontro com o outro na
gratuidade da vida, é o encontro amoroso proposto por Jesus"
“Sai da tua terra e vai” (Gn 12,1): assim começa a caminhada de Abraão,
pai da fé, segundo a tradição judaico-cristã. A fé tem, portanto, uma dimensão
itinerante que começa com a experiência de migrar... Quando saí do Brasil, para
uma missão em Moçambique, tive a oportunidade de vivenciar a fé na simplicidade
da vida e no simbolismo dos gestos e ritos. A acolhida foi a porta de entrada
num mundo fascinante e encantador. Fui envolvido pela cultura, tradição e
alegria do povo que me ensinou a ressignificar o que é essencial para a fé,
para a vida. E, acredito que em cada povo, por meio das suas tradições,
línguas, danças e estilos de vida, podemos contemplar “o rosto plural da fé”.
Abrir-se ao
próximo, fazer-se presente na vida da comunidade e viver em família para além
dos laços de sangue são valores tão fortes que rompem com a lógica do ter, do
poder e do prazer. Ainda hoje, na região de Furancungo, onde morei, o anfitrião
lava as mãos dos seus convidados antes das refeições e todos partilham do mesmo
prato; quando alguém fala, os outros sentam para ouvir com atenção; sempre que
você entrega ou recebe alguma coisa deve fazer isso com as duas mãos, gesto que
significa a totalidade da pertença na troca de vivências.
Em Moçambique, fui
missionário e fiz a experiência de ser migrante. Tive a oportunidade de
perceber que sou diferente, de aprender outra cultura e língua (chichewa), de
me encantar com a pluralidade da nossa fé comum. O encontro com o outro na
gratuidade da vida, é o encontro amoroso proposto por Jesus. A fé se incultura
quando percebemos que Deus foi se revelando e se dando a conhecer ao ser
humano, respeitando a história e a caminhada dos povos. Em Jesus, a revelação
plena de Deus Pai se faz assumindo a nossa humanidade: Ele é o Verbo encarnado (Jo 1,1).
Jesus assumiu a
identidade humana em sua totalidade. Sentiu frio, fome, sede, alegrias e
tristezas. Esteve ao lado dos mais pobres, abandonados, doentes, viúvas,
órfãos, estrangeiros. Jesus se aproximou e se envolveu com a realidade das
pessoas sem fazer pré-julgamentos. Essa foi a atitude de Jesus e deve ser a
nossa, através de quem Ele continua atuando na história da humanidade.
Disse o Papa
Francisco aos participantes do encontro sobre mobilidade humana na Cidade do
México: “é necessário passar de uma atitude de defesa e de
medo, de desinteresse ou de marginalização – que, no final, corresponde
precisamente à ‘cultura do descartável’ – para uma atitude que tem por base a
‘cultura do encontro’, a única capaz de construir um mundo mais justo e
fraterno, um mundo melhor”.
Ver o mundo com o
olhar de Jesus é perceber a diversidade cultural e promover a cultura do
encontro. As pluralidades da fé, dos povos e dos costumes se fazem cada vez
mais presentes no nosso dia-a-dia em virtude da globalização e da migração. No
passado, foi criado um senso comum no qual as tradições indígenas eram tidas
como ritos folclóricos e as raízes africanas eram estigmatizadas como rituais
demoníacos. Precisamos superar essas falsas ideias e sentir a Boa-Nova de Jesus
viva nos diversos povos.
O rosto de Deus nos
fascina pelo amor, o rosto da fé nos encanta pela abertura ao próximo. Somos
verdadeiramente filhos e filhas de Deus independentemente de cor, raça, sexo ou
nacionalidade. Que Deus nos inspire a exercitar e promover a cultura do
encontro com tantos migrantes que se encontram no meio de nós e, muitas vezes,
nem percebemos.
(*) Padre, advogado e missionário
redentorista.
Fonte: O Povo, de 12/7/2015. Espiritualidade. p.31.
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