sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Crônica: “O homem que fazia até meinino” ... e outro causo

O homem que fazia até meinino

E o diabo do botão da descarga do banheiro de casa pifou justo no dia em que o casal interava 30 anos de "convívio domiciliar aceitável". Estrompou a rosca da válvula, e quengou a boia. A água não descia da caixa. E dali a uma hora e meia o povo convidado começaria a chegar pra encher o bucho de baião de dois e cerveja - e paçoca e guaraná. E cinzano e bolo mole. Tinoco e Mundinha tinham que pensar vexado na solução.

- Já sei! - descobriu ela.

- Desembuche, então! - animou-se ele.

- Zé Legal, vizinho de mamãe. Chegou tem dias na cidade! Dizem que é torneiro mecânico de gabarito federal!

- Pois manda chamar o sujeito, ligeiro! Cumpade Honório tá já riscando aqui!

Pronto. Zé botou um barbante novo para acionar o mecanismo regulador da boia e a água agora flui serena para o vaso sanitário. Chamou o dono da casa pra ver se tava tudo no jeito - "aprovado". Tinoco paga e, sem ver de quê, reclama-se do cabelo grande demais, "tô parecendo jumento novo", e que ainda tinha de ir salão de barbeiro desbastar a cabeleira. Ocorre que Zé Legal tem grata novidade:

- Seu Tinoco, eu também faço cabelo, barba e bigode. Tenho curso do Senac...

- Pois corte já essa minha juba! Cumade Augusta chega já com reca de gente dela.

Ficou bacana o "prinspe de galo" operado. Tinoco paga - 15 reais e 50. E, de novo, sem ver de quê, resmunga o estado em que se encontrava a parede da sala - mal rebocada, em um dia tão especial como aquele. Afinal, são três décadas de mancebo com sua Raimundinha Olivério. Mais uma surpresa:

- Se o senhor se astrever me contratar, passo já uma mão de cal e a sala fica só o píper!

- E tu sabe pintar parede, macho?

- Fui ajudante de papai, Chico Pintor.

- Pois não perca tempo e dê o grau! João meu irmão não demora bater aqui...

E Zé Legal mostra habilidades, ainda, consertando a televisão, a enceradeira e um moedor de carne; tirou quatro goteiras, aguou o jardim, capou o cachorro... A dez minutos de Cumpade Honório dar as caras para a festança, dinheiro todo no bolso, Zé despede-se gentil, com o sentimento de dever demais cumprido:

- Tenham uma noite maravilhosa, vocês e seus filhos.

- Temos filhos não. Tinoco gorou, tem problema de fertilidade - redarguiu Mundinha acanhada.

E, sem ver de quê, Zé Legal entrega à mulher seu cartãozinho de apresentação.

- Precisando, é só me chamar!

Eu corto um dedo da mão!!!

Dois amigos proseiam na Praça da Matriz. O raivoso começa o bodejado, lamentando que "pisou em rastro de corno".

- Tenho motivo pra dizer isso, amigo Penico Cheio: acabo de dar um jeito no pescoço, tô com a doença do caroço, cortaram meus "aposentos" (aposentadoria). E o pior...

- Fique frio, colega! Se é assim que tem que ser, é porque é assim. Nem amarrado eu saio do meu torrão natal!

- Conversa é essa?!? Como é que pode prestar um lugar em que ninguém é conhecido pelo nome do batistério? É só apelido, apelido, apelido!

- Eu acho é pouco! Quero que o açude pegue fogo pra eu comer tilápia assada!

- Com licença da má palavra, mas um vereador "Sungão"; um padre "Santo do Pau Oco"; um farmacêutico "Dose Única"; um delegado "Peixeira"; um coveiro Mais Tarde...

- Sem falar de ti, né? Chega me dá uma coisa ruim te chamar...

- Povo sem futuro! Por isso que eu quero ir embora daqui!

- Vá não, Amarildo!

Fonte: O POVO, de 8/7/2021. Coluna “Crônicas”, de Tarcísio Matos. p.2.

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