segunda-feira, 8 de maio de 2023

CAMINHOS DO CEARÁ: Madeilton, Francisco e João Martins

Por Izabel Gurgel (*)

Em cada casa, uma oficina. Cada casa, um altar. Juazeiro do Norte é uma cacimba de casas - oficinas, casas que são moradia e lugar de trabalho, lar e ateliê.

Convido você a, como a gente diz, a dar uma passadinha na casa de número 545 da rua de Santa Luzia, no atual Centro do antigo povoado cujo crescimento vai se acelerar com o milagre em acontecimentos que se sucedem, o da hóstia virando sangue quando a beata Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo (1862 - 1914) comunga.

É a bem dizer a casa de uma vida toda de João Martins, de sua irmã Francisca. Aberta para a rua, tem a loja de doces. Os doces Madeilton. Em seguida, a oficina de costura, com a parede do Santo. É a sala-altar de Francisca, com devoções explícitas em oratório.

Até chegar à cozinha, a casa comum de cada qual. Tem quintal.

Estive lá uma primeira vez, levada por Dora Freitas, colega da faculdade. Imagine: você a bater as quatro províncias da cidade, que no Juazeiro constituem uma miríade de mundos, a se espantar com a própria ignorância - sabemos quase nadica de nada do que quer que seja. Do Ceará, então, menos ainda -, a se absurdar com a experiência sempre inédita do sol tornando líquido o cérebro que a gente pensar nos comandar, e escuta "Vamos lá em Madeilton, comer um doce, beber um caneco d'água". Volto a cada viagem.

"Lá em Madeilton" faz parte do coro das ruas de Juazeiro há mais de 50 anos. A placa diz "desde 1965", mas quem nos recebe em fevereiro de 2023 conta que é só o ano anotado na placa, mas é de "bem antes, bem antes".

"Lá em Madeilton" acende memórias. Memórias do porvir. Quem não conhece, recebe uma minuta do que vai encontrar. Quem conhece, já vai ficando com água na boca, como se pensasse, por exemplo, em tamarindo. Mas modo doce. Transformado pelas mãos, o fogo, o lastro de tempo que nós, criaturas humanas, fazemos cozimento, vivemos em ato, no próprio corpo, o modo ateliê: elaboração, forja, feitura de algo que não existia a partir, claro, de matérias e utensílios que o uso torna comum.

Conta-se que no auge da vida de salas de cinema na cidade, a loja de doces de João Martins ficava aberta até depois da última sessão. Saia-se do cinema para um doce "lá em Madeilton". E tomar um caneco d'água. Faço agora o caminho imaginário do cine Plaza, na rua Padre Cícero, cruzando a praça de mesmo nome.

Até hoje, a água é gratuita. Você lembra da passagem da água como bem público para serviço público, depois virando mercadoria? Cerca de 10 famílias derivadas da de João Martins vivem da loja de doce. A água, a água segue gratuita. É de pote - portanto, fresca, quase friinha - e servida em caneco de alumínio encandeando a vista. E gelado. O copo, "Lá em Madeilton", guarda-se na geladeira. Sinta o frescor. Luxo. A pesquisadora Regivânia Almeida me disse que tem pote remanescente de ceramistas do sítio Palmeirinha.

A Casa do Doce João Martins, como diz o perfil no instagram, virou "Lá em Madeilton", um cunhado dele que atendia no balcão. De muita presença em rádio, marcava encontro com Deus e o mundo.

Os doces? Passe "lá em Madeilton". Ou peça alguém para trazer. Frutas, leite, gergelim, batata doce...

Na cozinha, o fogão a lenha não se apaga. Os panelões, a gente se mira neles. E Narciso acha feio o que não é espelho, não é?

Vai virar museu. Fogo aceso, máquina de costura com pano a ir e vir, sombra e água fresca.

(*) Jornalista de O Povo.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 16/04/23. Vida & Arte, p.2.


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