quinta-feira, 8 de julho de 2021

Pandemia e Humor judaico

Meraldo Zisman (*)

Médico-Psicoterapeuta

(Humor judaico é aquele que faz graça da própria desgraça)

Atribuem ao célebre médico Sigmund Freud a história de um mendigo que cruzou com o barão Rotschild, banqueiro afamado, enquanto este flanava pelas ruas da Viena imperial; o mendigo aborda o altivo homem de finanças com uma história de arrancar lágrimas ao mais calejado dos capitalistas e consegue dele uma esmola nada desprezível.

O banqueiro continua com seu passeio vespertino e, algumas quadras adiante, depara-se com seu beneficiado deliciando-se com fina iguaria, dentro de uma loja de Delicatessen (estabelecimento que comercializa alimentos e bebidas de alta qualidade, de paladar diferenciado e sofisticado, em ambiente requintado).

Indignado com a ousadia do tipo, entra e o increpa com dureza. E este, sem descer um grau da sua dignidade, replica: “Não compreendo a ira de Vossa Senhoria. Advoga então Vossa Senhoria que não posso comer caviar quando não tenho dinheiro e quando tenho dinheiro tampouco posso comer caviar?”.

José Saramago, prêmio Nobel de Literatura (1998), dizia:

Alguns podem até estranhar a relação do judeu com o único prêmio Nobel do meu idioma materno. Concordo, mas meu pensamento é livre”. (José Saramago, In: as Palavras de Saramago, registradas no livro Organização e Seleção de Fernando Gómez Aguilera, Companhia das Letras, 2010, p. 343).

Registra em seguida Saramago o seguinte conceito nas rádios e canais de televisão (não havia ainda os tais de meios de comunicação social): “Cada vez mais, somos meros atores de livros e contribuímos cada vez menos para a formação de uma consciência.

Como estamos em pleno estado de pandemia mundial será que existe mesmo um humor judaico? Sim, ele existe e faz graça da própria desgraça.

A técnica foi aperfeiçoada por anos e anos de perseguições, tendo nascido no século XIX, nos shtetls, palavra em iídiche – língua falada pelos judeus da Europa Oriental  – que designava os miseráveis povoados, vilas ou aldeias daquela região, aonde se lhes permitia morar. O shtetl surgiu como resultado de dois processos intimamente relacionados: primeiro, a exclusão social dos judeus e a permissão de sua permanência apenas em determinadas áreas (conhecidas como Zonas de Residências Judaicas), como parte da restrição dos seus direitos, como o de circulação nas cidades, o de exercer cargos no governo e a posse de campos de cultivo. Desse modo, eles foram concentrados, discriminados e forçados a passar por grave pauperização. Esta situação foi criada pelo ‘czar’ Nicolau I (1796-18 55), e mantida pelos ‘czares’, Alexandre II, Alexandre III e Nicolau II (1868-1918), o último ‘czar’ que imperou na Rússia.

Vale salientar que o confinamento dos judeus nas Zonas de Residências Judaicas facilitou a política nazista da chamada Solução Final da Questão Judaica (Endlösung der Judenfrag), que culminou com o Holocausto; segundo, os judeus, assim como outros povos discriminados, se voltaram para suas crenças ancestrais, endogâmicas e fechadas em relação à maioria da população dos países onde habitavam. Além disso, para conservar o equilíbrio mental, bem como as defesas psicossociais, eles criaram o “humorismo da desgraça”, passando a produzir humor sobre a situação em que viviam. O denominado humor judaico foi (e continua sendo) adubado pela estranha parceria sadomasoquista entre torturador e torturado. Quem pesquisar o caráter desse humor de forma mais aprofundada não poderá negar que ele representa uma tentativa (embora frustrada) de angariar muitas gargalhadas à custa da própria dignidade humana. É interessante observar que tal espírito judaico, surgido originalmente nos shtetls da Europa Oriental, migrou para os Estados Unidos, levado por levas de judeus escorraçados de seus países de origem e se adaptou à cultura e à língua americana do Norte.

E esses imigrantes se inspiraram na vida dura e cruel que seus antepassados tiveram, ao habitar nas remotas aldeias da Polônia, da Rússia e adjacências. Creio que a ansiedade foi se tornando crescente, na tentativa de se adaptarem ao modelo de referência da maioria da população da nova Pátria, e o humor foi se tornando mais corriqueiro, masoquista, autodepreciativo e autocrítico.

Imaginem se isso ocorresse aqui no Brasil, aonde a fome é endêmica e as pessoas que tem na pele alguma quantidade do pigmento melanina são os mais vulneráveis ao ataque do vírus denominado covid-19. A mortalidade entre os pobres é bem maior, mesmo se no início os primeiros casos tenham ocorrido nas classes mais privilegiadas e com menor teor de melanina, que viajam, seja qual o motivo, para fora do país. A melanina, não custa nada lembrar e poupar algum raro leitor que chegou até aqui, é uma substância derivada do aminoácido tirosina que contribui para a pigmentação de determinadas partes do corpo: pele, cabelos, olhos.

O perigo da sobrevivência da Humanidade não está nas armas ou nas honrarias, mas no coração dos Homens, que deve enfrentar agressões, fanatismo, prepotências, excessos de zelos ou a incapacidade de imaginar, de sonhar, de ouvir ou de rir de nós mesmos, além da ação de preconceitos das mais diversas matizes.

Como psicoterapeuta afirmo:

“Sem humor não existe psicoterapia”.

(*) Professor Titular da Pediatria da Universidade de Pernambuco. Psicoterapeuta. Membro da Sobrames/PE, da União Brasileira de Escritores (UBE), da Academia Brasileira de Escritores Médicos (ABRAMES) e da Academia Recifense de Letras. Consultante Honorário da Universidade de Oxford (Grã-Bretanha).

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