quarta-feira, 26 de abril de 2023

TRIBUTO À SIMONE SIMÕES

Por José Jackson Coelho Sampaio (*)

Iniciava minha carreira de psiquiatra e desenvolvia as primeiras experiências de pesquisa em Saúde Mental e Trabalho, com estudos psicossociais sobre o drama das mulheres castanheiras, quando, certa tarde, sou instado a atender pedido de conversa por parte de professora de Antropologia da UFC, que havia iniciado mestrado na UnB. Uma mulher alta, morena, longos cabelos negros e grandes brincos ocupou o consultório com voz rouca, risada franca e curiosidade intelectual ilimitada. Era Simone Simões Ferreira Soares.

A conversa foi um terremoto que marcou minha história. Discutimos as teorias sobre loucura e estigma e ela demonstrou conhecer meus artigos nas Revistas O SACO e Rádice sobre doença mental e pobreza, migração e tarefa exaustiva. Daí, centramo-nos nas castanheiras, responsável por 3% da População Economicamente Ativa (PEA) feminina cearense e 35% do atendimento em nossa emergência psiquiátrica, sob diagnóstico polêmico e complexos conflitos com a perícia médica.

Simone desenvolveu sua proposta de dissertação de mestrado sobre o tema do estigma e das estratégias de sobrevivência, pensando como campo as demandas de licença-saúde das castanheiras, em trabalho sob a orientação do grande Roberto Cardoso de Oliveira, que aceitara orientá-la e autorizara a busca de um orientador de campo, e ela e ele solicitavam que eu assumisse este papel, mesmo conscientes de eu ainda não ter titulação acadêmica. Assumi e acertei, pois seu trabalho alcançou sucesso intelectual e político ímpar.

Passamos a conviver entre os vinhos e as cervejas que ela gostava de beber na varanda de sua casa, as minhas noites profundas de sono que ela interrompia para apresentar "só mais uma dúvida, outra questão", a parceria do gosto poético, a solidariedade entre nossas famílias que se divertiam e se respeitavam, os cartões dela recebidos em cada aniversário meu. Estivesse ela ou eu onde estivéssemos, a generosidade de Simone acontecia. Os temas de conversa foram evoluindo, entre chistes sobre sua concepção de liberdade e seus enormes brincos (certa vez, ofereci-lhe um aro de bicicleta para que ela fizesse brinco), mas agora, sei, com uma tristeza terna, que em meu próximo aniversário não haverá mais o cartão de Simone na caixa de correio, nem seu chamado insone ao telefone, nem sua risada feliz. 

(*) Professor titular de Saúde Pública e ex-Reitor da Uece.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 26/04/2023. Opinião. p.21.


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