terça-feira, 4 de abril de 2023

CAMINHOS DO CEARÁ: arquiteturas da vida em comum

Por Izabel Gurgel (*)

Os bailarinos cearenses Felipe Araújo e Henrique Castro dançam "É carona..." no pátio do Theatro José de Alencar. Estamos em junho de 2012, aniversário de 102 anos da instituição. Acontece a II Virada do TJA, programação nos quatro cantos do teatro, dia, noite, madrugada. Lugar de passagem, a dança da dupla torna o pátio um lugar de permanência.

Dois anos antes, em 2010, uma trapezista da companhia francesa La Belle Zanka fazia lá suas evoluções, suspensa no gradil de uma das passarelas. Em 2008, a palhaça de rua Maku Jarrak, argentina, armou no pátio a roda para uma sessão de maravilhas: vimos, então, a estrutura de ferro do TJA replicada na esfera de vidro que a artista fazia dançar em seus braços.

No pátio, cem pessoas sentadas em grande círculo tomam champanhe e fazem um brinde à aniversariante, Nastássias Filíppovnas. A festa vai sair do tom de comemoração antes de se findar a primeira taça. O fogo que fará arder uma casa - em miniatura - não é a única força de destruição e renovação acionada. A sordidez de que somos capazes, nós os humanos, encontrou na arquitetura a céu aberto do Zé de Alencar um campo para emergir como surge na literatura de Dostoiévski: capaz de florescer em qualquer lugar, como a poesia; artifício possível de chegar a requintes de elaboração que, como disse um artesão de Pernambuco sobre a maravilha que ia fazer brotar da matéria-prima em suas mãos, ao final vai parecer "nascida" e não "feita".

A cena ocorre depois das nove da noite, parte do espetáculo "O Idiota", que começou três horas antes, às 18h. Seguiria até a madrugada. Passamos pela encenação da Mundana Cia de Teatro. As descrições aqui iniciadas talvez possam operar como imagens a compor novas memórias sobre e do TJA.

"O Idiota", apresentado como uma novela teatral, tinha duração de mais de 7h, com intervalos. Da calçada ao porão, com cenas também no jardim, Teatro Morro do Ouro e Praça Mestre Pedro Boca Rica, fazia uma travessia pelos espaços da edificação de 1910 conduzindo a plateia por um TJA que se atualiza, sabemos sentindo, a cada uso, a cada ocupação.

Talvez possamos dizer que haja um momento na vida dos teatros-monumentos em que seja preciso fazer escolhas. Ou épocas distintas, colocando novas questões, exigem um reposicionamento de instituições dedicadas às artes. Se não uma resposta, uma acolhida às novas perguntas.

Desde a reabertura do TJA em janeiro de 1991, depois do restauro, pratica-se mais e mais ocupar cenicamente espaços que não foram criados para isso. Experimentar usos. O citado restauro ampliou não só a geografia do Zé de Alencar. Deu passagem, mais ou menos referendada pelas gestões que se seguiram, a usos talvez pouco ou até então não praticados na edificação de 1910 e na sua expansão física.

O baile à fantasia do Zé de Alencar tem precedentes. Outros carnavais passaram pelo TJA. Bailes e desfiles como práticas de teatros, acontecimentos em teatros. Bonito é ver uma Vandinha Adams cantando|dançando "Não deixe o samba morrer" com seu companheiro Zorro ao tempo que circula, no jardim-salão, um ônibus de papelão 'vestido' por um bando e outro e movido por uma desclassificada música-chiclete. Em meio ao pé de jasmim, o pau-ferro, o jucá, as palmeiras leque de Fidji. É também sobre isso o brincar junto e misturado. Arquiteturas da vida em comum, para a vida em comum, realizando-se ali: no frigir dos corpos. Seres viventes = tudo que vive. E morre. Não só nós, humanos.

(*) Jornalista de O Povo.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 27/02/23. Crônica, p.16.

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