segunda-feira, 17 de julho de 2023

CAMINHOS DO CEARÁ: Côrrinha e Dinha, mestras de si

Por Izabel Gurgel (*)

Conta-se a idade da cerâmica em milênios. A formação do solo, na casa de milhões. Maria do Socorro Nascimento, a Côrrinha, guarda em si imensas experiências de tempo. Ela percebe e trabalha com a variação do que para a maioria de nós é o barro do chão, a argila, as areias, em condensações só perceptíveis para quem, feito Côrrinha, dança junto aos materiais, com eles vai se constituindo. Conhece-lhes as propriedades, vislumbra feitos, com eles materializa utensílios. Ela tem olaria junto à casa onde mora, no sítio Baixa do Quaresma, em Missão Velha.

No sul do Ceará, é um dos seis municípios que abraçam o GeoPark Araripe. Côrrinha vive nas vizinhanças dos geossítios Cachoeira de Missão Velha e Floresta Petrificada do Cariri. Na passagem da matéria-prima à cerâmica, o corpo todo de Côrrinha está implicado no ofício que aprendeu com Sebastiana Amaro dos Santos, de família de larga trajetória de oleiros, os Amaro, do sítio Passagem de Pedra.

A boca do forno tem a sombra do tempo em forma de fogo. Ali, Côrrinha cozinha pote, rosário, cascata de sinos. Já cozinhou onça. Depois, estampou pintas na pele e pelos no focinho. Nas áreas da fornalha, o pé de urucum se espalha em fartura de folha, flor, fruto. A lição encarnada do colorau a nos lembrar do trabalho da imaginação, do corpo inteirinho implicado na vida-ateliê que é transformar isso naquilo para existir. A insistência da vida em perdurar. Só possível de mutação em mutação, feito a caatinga esperando chuva para tornar-se aquilo que ela é.

Raimunda Ana da Silva também guarda saberes sentidos (d)e práticas ancestrais. Dona Dinha vem de uma família dedicada a fiar e a tecer, artes que mulheres e homens tornaram possível laborando na biblioteca das árvores, das águas, descobrindo e catalogando fibras vegetais, inventando ferramentas, mirabolando traquitanas para o trabalho.

Como a Terra em movimento, é uma dança também a do corpo-tear de Dona Dinha. Corpo desenhista, compositor, orquestrando madeiras e fios. É com o próprio corpo, é no corpo, que Dona Dinha faz a instalação funcionar para tecer redes de fina geometria. Tão bonito e complexo o fazer quanto o feito. Partitura bonita a de Côrrinha fazendo cerâmica, a de Dona Dinha fazendo rede.

Casas-ateliês da região, como as de Dona Dinha e Côrrinha, fazem parte de uma rede de museus orgânicos, de casas que são museus. É uma iniciativa da Fundação Casa Grande, com sede em Nova Olinda, cidade onde Dona Dinha mora. Casas, criaturas, viventes de tantos tipos, grupos, núcleos familiares e suas sabedorias inventadas que dizem das fertilidades da Terra, e daquelas terras.

Guardar, uso sempre no sentido do poema homônimo de Antônio Cícero. Côrrinha e Dinha guardam feito o poeta, usando.

(*) Jornalista de O Povo.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 11/06/23. Vida & Arte, p.2.

Nenhum comentário:

 

Free Blog Counter
Poker Blog